Venire contra factum proprium e atuação judicial



Venire contra factum proprium e atuação judicial

Aristóteles já dizia que a lei da contradição pode ser formulada sob três ângulos, o primeiro de ordem ontológica (é impossível que o mesmo simultaneamente pertença e não pertença ao mesmo sob o mesmo aspecto); o segundo de ordem lógica (asserções contraditórias não podem ser simultaneamente verdadeiras) e o terceiro de ordem psicológica (não se pode crer que o mesmo seja e não seja[1].

Poderíamos dizer que a contradição é a conclusão a que se chega o intérprete quando, diante de duas ou mais premissas, percebe-as inconciliáveis, ou — colocando de uma outra maneira — não podem elas ocupar o mesmo argumento ou ideia.

O exemplo mais comum é de que, se uma proposição diz “A é igual a B” e outra diz “A não é igual a B“, ambas se negam mutuamente e, portanto, são contraditórias. Isso implica concluir que somente uma delas é falsa e, claro, outra verdadeira, fazendo com que não se prestem, juntas, a fundamentar um mesmo raciocínio, na medida em que se anulam.

Se fossem conciliáveis, poderiam ser utilizadas para fundamentar, o que lhe emprestaria o adjetivo “lógica” à ideia subjacente. Noutros falares, lógica é a congruência que duas ou mais premissas concedem a uma conclusão ideativa, por não se autoexcluírem e, assim, fundamentarem-na.

Mas a ausência de contradição não se espera somente de ideias ou proposições verbais, senão também de atos, que são suas materializações no mundo real.

Requer-se dos homens que vivem em sociedade, por consequência, que não somente pensem ou argumentem de forma lógica, mas igualmente ajam de maneira lógica.

Essa é a expectativa que se tem de cada cidadão, a respeito dos atos e funções que lhe cabe dentro do espectro social. Ao agirem de forma lógica, se animados por bons valores morais, os homens tendem a proceder com boa-fé, pois obrariam com lealdade e probidade [2]. Tudo isso impõe-se na criação de uma segurança jurídica capaz de sustentar o convívio.

Dessa expectativa não escapa o juiz, pelo que o legislador já impôs um dever de agir conforme a boa-fé, não somente às partes, mas a todos que participam no processo [3], aí incluídos, deste modo, as partes, os advogados, magistrados, membros do Ministério Público e servidores.

Considerando que estão umbilicalmente ligados os conceitos de boa-fé objetiva e segurança jurídica, proíbe-se o comportamento contraditório, cunhado na expressão latina venire contra factum proprium. Quer dizer, para não ferir a referidos conceitos, impede-se “que a parte, após praticar ato em determinado sentido, venha a adotar comportamento posterior e contraditório” [4].

Dito isto, se um magistrado defere uma produção de prova, não pode, sob qualquer argumento, posteriormente indeferi-la, praticando ato a demonstrar a preclusão da produção probatória anteriormente permitida por decisão que transitou em julgado formalmente, já que a parte contrária dela não recorreu.

Imagine-se — pensando no processo penal — que na resposta à acusação haja requerimento de produção de prova técnica (exibição de documento em posse de terceiros, elaboração de perícia etc) — sem as quais a instrução não poderia se iniciar — e o magistrado a defere.

Meses depois, todavia, no dia da audiência de instrução, percebe que seu comando judicial, que deferiu a produção de prova, não foi cumprido e, sob o argumento de não atrasar os trabalhos, volta atrás e “indefere o que já havia deferido”, ou posterga a produção daquela prova para depois da instrução.

Esta atitude é um acinte à vedação do comportamento contraditório, pois ao deferir a produção de prova, o juiz cria expectativa às partes e estas, claro, se preparam para a prática do ato seguinte na esperança de que a promessa da realização do ato anterior seria cumprida. Jamais imaginam que um magistrado irá voltar atrás ao que determinou. Ou seja, aguardam dele a boa-fé.

Em matéria processual penal, espera-se da parte que, “após praticar ato em determinado sentido”, não venha a “adotar comportamento posterior e contraditório“, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça [5].

Tais deveres igualmente impõem-se ao juiz, consoante já referido, na linha do que já assentou o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), por meio de seus enunciados, os quais, apesar de área distinta da processual penal, a ela se aplicam subsidiariamente [6], com os devidos cuidados [7].

Destacam-se aqui o de nº 375, que diz: “O órgão jurisdicional também deve comportar-se de acordo com a boa-fé objetiva”; e o mais incisivo ainda, de nº 376, que assevera: “A vedação do comportamento contraditório aplica-se ao órgão jurisdicional” [8].

Em conclusão, torna-se claro que o devido processo legal, que também poderíamos chamar de “devido processo penal“, é a rubrica sob a qual não se pode agrupar apenas a necessidade de estar ciente da acusação e de ser ouvido sobre ela [9], necessitando, sim, de elaborar-se um escudo impeditivo de ações que neutralizem o justo processo, especialmente quanto à oportunidade probatória e de manifestação da parte em tempo oportuno, o que há formatar melhor o conteúdo da sentença penal futura.

Juízes e partes ganham com a vedação ao comportamento contraditório de todos que participam do andamento processual.

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Artigo publicado originalmente no Conjur.


[1] Lukasiewicz, Jan. Sobre a metafísica de Aristóteles – textos selecionados. Coord. Marco Zingano. 1 ed. São Paulo: Odysseus, 2005, p. 02.

[2] Nery Junior, Nelson; Andrade Nery, Rosa Maria de. Instituições de direito civil. v. 1, t. 1. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 570.

[3] CPC, art. 5º: Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. (grifou-se)

[4] AgRg no REsp 1099550/SP, Rel. Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJe 29/03/2010.

[5] STJ – AgRg no AREsp: 569940 RJ 2014/0217696-6, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 02/10/2014, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/10/2014.

[6] STJ – RHC: 96948 BA 2018/0081829-6, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 12/06/2018, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/06/2018.

[7] Suannes, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 152.

[8] Por todos, julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: APL: 02101315220178190001, Relator: Des(a). ANDRE EMILIO RIBEIRO VON MELENTOVYTCH, Data de Julgamento: 13/04/2022, VIGÉSIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, em que os enunciados são aplicados.

[9] Suannes, 1999, p. 325.

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, discente do LLM em direito penal econômico pelo IDP, presidente da ABRACRIM-MA, articulista com livros publicados.


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