Ponto inflexível do direito de defesa: o mínimo defensivo no interrogatório



Ponto inflexível do direito de defesa: o mínimo defensivo no interrogatório

São muitas as manifestações dos tribunais pátrios a respeito da inaplicabilidade do princípio da ampla defesa e do contraditório no curso do inquérito policial (STJ, HC 410.942 SP 2017/0193298-4 e RHC 47.938 CE 2014/0117707-2; STF, AG.REG. no Agr. Instr. AI 687.893 PR).

O debate doutrinário e jurisprudencial nasceu da dúvida sobre a extensão de aplicação do contido no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, que diz: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O que fica claro é que, apesar da discordância quanto à extensão da aplicação destes princípios, atualmente é unânime, na doutrina e jurisprudência, a impossibilidade de se aplicá-los na mesma dimensão e profundidade que no processo e, assim, na fase investigativa a defesa seria limitada, e o contraditório, mitigado, na lição de Leonardo Marcondes Machado [1].

Um dos motivos é que, além do argumento quanto a interpretação semântica que faz da norma acima dita, o investigado poderia tumultuar indevidamente o trabalho da polícia ao fazer requerimentos, sem nada contribuir para a persecução da verdade e conclusão dos trabalhos. Em resumo, a eficácia da investigação estaria comprometida [2].

Ciente da importância monumental da questão, é preciso ir, contudo, um pouco mais além e encontrar o ponto inflexível do direito defesa no inquérito, aquele em que o estado tem dever de ação, não apenas de abstenção, pois ainda que não revestido daquela completude ínsita ao processo propriamente dito, não se pode conceber um conjunto de atos estatais destinados ao esclarecimento do fato penal e possível imputação criminal, sem que haja uma garantia irrenunciável por parte do estado.

Dito isto, não se pode negar que a presença do contraditório e ampla defesa, hoje, em alguma medida, é notória e inegável. O fato de que cabe à defesa técnica a indicação de assistente técnico para a apreciação da perícia oficial, permitindo-lhe inclusive a apresentação de pareceres na fase inquisitorial (CPP, artigo 159, §5º), bem como o direito do advogado à assistência de seus clientes durante a investigação, declarando serem nulos os atos de interrogatório ou tomada de depoimentos sem a observância desta garantia (Lei 8.906/94, artigo 7º, XXI), corroboram a afirmação.

O direito de defesa divide-se em defesa técnica e autodefesa, sendo esta última a que exercida pelo investigado no interrogatório, de forma positiva (quando deseja se manifestar e o faz), ou negativa (quando pratica o direito ao silêncio). Interessa-nos aqui a autodefesa positiva, pois é a única capaz de acrescentar elementos de prova para o esclarecimento da investigação.

Esta modalidade de defesa jamais pode ser interpretada como atraso ou tumulto ao andamento do feito. Noutras palavras, ouvir o que o investigado tem a dizer, em nenhuma hipótese, pode ser considerado um atropelo à persecução penal. Pelo contrário — o que é mais importante — suas declarações poderão evitar a desobediência completa da norma constitucional ao garantir o mínimo quanto ao contraditório e ampla defesa.

Porém, de que mínimo se trata? Do conceito sócio-jurídico de que falam os constitucionalistas, os quais o conceituam que o conceituam o mínimo existencial ao desfiar a aplicação de proteção da dignidade da pessoa humana.

O entendimento é de que deve haver, pelo estado, a garantia de um mínimo de segurança social, que se traduza em recursos materiais para uma existência digna, sem os quais a própria dignidade restaria sacrificada. O estado, ao adotar políticas públicas, deverá fazê-lo com vistas à manutenção do mínimo existencial, bem como deverá se abster de adotar qualquer postura que viole este mínimo [3].

Ao convidar este conceito para fazer-se presente no campo da persecução penal, o estado, apesar das decisões de inaplicabilidade total do contraditório e ampla defesa no inquérito, não poderá esvaziar a cláusula constitucional. Assim, terá que aplicar as diretrizes com um alcance do mínimo de defesa, ou direito ao mínimo defensivo, que se dará através da oportunidade concedida ao investigado de autodefender-se no inquérito por meio do seu interrogatório, ainda que posteriormente deseje não comparecer ou permanecer em silêncio.

É certo que nalguns casos o investigado está foragido, com prisão preventiva decretada — o que impossibilita o interrogatório, caso não se entregue — ou mesmo em local incerto e não sabido, apesar de em liberdade, o que igualmente impossibilitará a oitiva.

Porém, quando solto ou preso, se possui endereço certo e conhecido nos autos, tendo a autoridade policial já ouvido as testemunhas e coletado as demais provas necessárias, é imprescindível que lhe seja oportunizada a autodefesa por meio de interrogatório, sob pena de se afastar por completa a aplicação da norma constitucional, naquele que é o momento fundamental de sua defesa, o interrogatório, repise-se.

Pode-se pensar que a constituição de advogado para acompanhamento do inquérito ou a vistas dos autos já seriam uma oportunidade de defesa oferecida pela lei, com o que não se discorda, e que o interrogatório seria apenas mais uma, dispensável por isso mesmo.

Entretanto, são todos direitos que dependem do requerimento da parte interessada, e que por isso mesmo não atraem a obrigação do estado independentemente disso. O que se deseja encontrar com esta reflexão, portanto, é a única prestação positiva obrigatória da persecução penal frente ao direito de defesa no inquérito, que é o interrogatório, quando possível, ou seja, quando haja endereço certo do investigado nos autos e/ou apenas um requerimento seu ou do causídico que o represente.

Que haja a orientação de juízes e tribunais pela não aplicabilidade total da ampla defesa e contraditório durante o curso do inquérito policial não é absurdo, mas que se negue a possibilidade de autodefesa no interrogatório, quando possível, com base naquele argumento, sem que daí haja nulidade, é completo desacerto constitucional que não tem mais razão de ser, considerando os contornos da Constituição de 1988.

Ademais, a ausência de dúvida em relação aos fatos investigados não pode valer de motivo para se negar o interrogatório. Se a autoridade já possui convicção suficiente com as provas colhidas e o interrogatório não a fará inclinar-se à posição contrária, pelo menos garantirá a mínima proteção ao investigado, dando guarida ao texto constitucional; se tem insegurança em relação a algum detalhe, o interrogatório poderá lhe fornecer elementos capazes de concluir na direção correta do esclarecimento factual.

Ora, um inquérito que foi finalizado sem ter sido oportunizado o interrogatório, quando possível, é a negativa da mínima possibilidade de reproche que reflita uma aplicação, ainda que parcial, do contraditório e ampla defesa.

Em jurisprudência, ainda que antiga, quando não vigorava a norma constitucional que se requer aplicada, o Supremo Tribunal Federal, em habeas corpus de relatoria do min. Bilac Pinto, entendia que a ausência de interrogatório policial só não gerou nulidade porque a defesa técnica acompanhou diligentemente todos os atos da instrução, portanto, ausente o prejuízo. A contrario sensu, não houvesse advogado acompanhando, teria a corte decretado a nulidade, pois o prejuízo seria evidente [4].

E nem se diga que o oferecimento da denúncia suplantaria eventual nulidade nestes casos, pois ver-se surpreendido com uma investigação já concluída, uma ação penal iniciada e medidas cautelares já decretadas, representa a violação da proteção à dignidade da pessoa humana, cujo albergue constitucional se impõe sobre processo e inquérito.

Deve ser mais bem analisada, portanto, a posição segundo a qual a ausência de interrogatório policial, quando possível, jamais conduziria à nulidade do processo (recebimento da denúncia).

Fonte: Conjur.


[1] https://www.conjur.com.br/2018-set-04/academia-policia-inquerito-policial-goza-contraditorio-mitigado-defesa-limitada. Acesso em 06 mar 2022.

[2] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, livro digital, p. 193

[3] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, livro digital, p. 667.

[4] HABEAS CORPUS. DEFESA. INTERROGATORIO POLICIAL DEFESA QUE SE MOSTRA ATUANTE, FAZENDO SE PRESENTE A TODOS OS ATOS DA INSTRUÇÃO. AUSÊNCIA DE INTERROGATORIO POLICIAL QUE NÃO CONSTITUI NULIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. (STF — HC: 52600 SP, relator: ministro BILAC PINTO, Data de Julgamento: 20/09/1974, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 25-10-1974 PP-*****)

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, docente do LLM em direito penal econômico pelo IDP, presidente da ABRACRIM/MA e articulista com livros publicados


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