Osvaldo Serrão: uma vida cultivada pelo verbo.



Osvaldo Serrão: uma vida cultivada pelo verbo.

Numa perspectiva existencialista ateia, a morte não possui qualquer significado maior que um pequeno ponto de contingência na imensidão. Sartre nos adverte que morremos, mas o mundo continua a existir e girar, sem se importar com este episódio ou mesmo dar-se conta dele. Nada muda no andar de baixo em razão daqueles que passaram ao andar de cima.

Jamais, porém, poderíamos encarar a passagem de qualquer pessoa desta maneira, sobretudo das que nos marcaram. Não nos é lícito, do ponto de vista de uma compreensão valorativa e transcendente da vida, percebermos apenas de esguelha, uma descomunal trajetória de homens nesta terra como a do advogado criminalista Osvaldo de Jesus Serrão Aquino, cuja espada e escudo vernaculares foram talhados nos rincões paraenses, em meio à floresta amazônica, entre rios e matagais, na defesa dos mais diversos réus que o infortúnio erigiu.

Serrão, nome forte, olímpico, era como chamavam-no os já próximos, que tiveram a oportunidade de com ele sentar, mais de uma vez, para um jantar entre amigos. E esta força, esta conotação intensa do nome que carrega, é também o reflexo de sua augusta carreira nas trincheiras da advocacia criminal.

Ninguém poderia imaginar, ao vê-lo falar, que se tratava, no início, de um tímido jovem, alheio ao desafio da palavra em público. Ele mesmo o confessava em suas palestras. Mas nada que os genes impuseram como barreira foi capaz de impedir o transpasse destas limitações por meio do estudo e do desafio de empenhar-se com ardor na causa sob sua responsabilidade.

Conhecido por sua acentuada oratória, desenvolvida a partir do altruísta dever do criminalista, Serrão caminhou com elegância sob a poeira das estradas de chão Brasil afora e sob os asfaltos das grandes capitais, sempre sereno e convicto de sua missão. Vindo do norte do país, palmilhava entre a advocacia do sul e sudeste com a humildade de não se ver maior que ninguém, mas ao mesmo tempo com a confiança de fazer com que todos ao seu redor lembrassem de que ali estava uns dos maiores do país.

Conheci Osvaldo Serrão em 2016, quando do encontro nacional da ABRACRIM em Curitiba-PR. Dali em diante todos os anos nos encontrávamos e para mim era sempre uma satisfação vê-lo falar e com ele trocar ideias. O ponto alto de sua presença nestes encontros, a meu ver, aconteceu em 2017, na arborizada João Pessoa-PB, quando, premido de uma modéstia que nos constrangia, reportou-se a Técio Lins e Silva, outro advogado de escol, e disse-lhe que tão honroso quanto ser da mesma geração do criminalista carioca era poder, naquele momento e naquele local, respirar o mesmo ar que seu mestre!

Inebriava-me o tom pausado com que falava, a articulação primorosa, não de cada palavra, mas de cada sílaba, entregue em bandejas de prata ao público que lhe ouvia atentamente. E nisso Serrão era um mestre de todos nós. Não se utilizava de frases autômatas, tão comuns no meio jurídico. Versava um raciocínio limpo, sem atravancos, num vocabulário distante de floreios indigestos, mas próximo das articulações primorosas e límpidas. Quem o ouvia chegava a concluir que provavelmente teria o causídico paraense tomado aulas presenciais de lógica com Aristóteles, de dialética erística com Schopenhauer e de argumentação com Chain Perelman.

A nova geração do direito, acostumada à velocidade de informação e ao consumo de enlatados linguísticos, começando pelos resumos que substituíram os livros e tratados, terá grandes dificuldades para desenvolver a arte da palavra.

Roberto Lyra[1], por exemplo, lembrava dos oradores pré-fabricados que, apesar de conversarem e escreverem com vivacidade, quando tinham a palavra, superestimavam “o aplomb, a mímica, o ritmo de domesticados”. Muitos voltavam “ao museu clássico, pigarreando para limpar a garganta, espigando o corpo, ajustando a grava, esticando o paletó.” E concluía que isso tudo era “o resultado inconfundível da mistificação dos que se propõem a formar ‘oradores’ até com aparelhos e apostilas, submetendo o verbo à verba, fraudando a impostação cívica, sentimental, intelectual, cultural. Degrada a arte oratória a serviço, mecaniza-se a palavra.

Há quem ouse dizer que hoje, para se atuar na advocacia criminal, não seria tão imprescindível o desenvolvimento da arte de falar, pois há causas em que tal qualidade não é exigida de forma primordial. Ora, de todos os adjetivos que poderiam adornar um engano como este, nada calha melhor que o ledo: ledo engano!

Mesmo em processos que tratem de criminalidade econômica, por exemplo, o criminalista, se se deseja completo, haverá de utilizar-se de sua oratória na sustentação nos tribunais, batalha hercúlea que trava contra o robotismo dos julgamentos. Nos juizados, muitas vezes a resposta à acusação é oral, bem como as alegações finais (e também do rito comum ordinário). A fala, na tribuna ou no gabinete, explicando as razões do recurso e os fatos a julgar, será a adaga de sua indumentária de guerra. Ademais, dificilmente o bom orador não escreve bem. O contrário já não é tão incomum.

O verbo é ação na luta pelas ideias, é o esquadro para o pensamento vago e gelatinoso, é a estrada pela qual caminha a imagem ideativa. Tirem a palavra do advogado e com ela irá embora até mesmo a cidadania, cujos séculos demoraram a conferir ao menor dos homens. Desrespeite-se ela e o resultado será o descrédito não só de quem a profere, mas do argumento, às vezes justo, que deveria ser considerado.

Persuasão, conquista e domínio são os objetivos do orador. Na disputa forense, defesa e acusação utilizam-se de armas idênticas, como dizia Alfredo Tranjan. “Chamam-se lucidez, raciocínio e lógica. São o florete e o punhal do espadachim. O elegante florete do discurso e o temido punhal do aparte.[2]

Essa era a mecânica e o resultado da atuação de Serrão. Seu legado está posto. Em mim rendeu frutos e certamente os que conviveram com ele mais de perto puderam experimentar maiores e melhores. Portanto, há uma forma de não ser um Sartre diante do passamento de alguém. Como? Sendo grato pelo que, no exemplo, recebeu das mãos de quem já se foi, algo que o dinheiro não pode pagar.  


[1] LYRA, Roberto. Como julgar, como defender, como acusar. Belo Horizonte: Editora líder, 2012, p. 152.

[2] TRAJAN, Alfredo. A beca surrada – meio século de foro criminal. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1994, 246.

Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, especialista em ciências penais, presidente da ABRACRIM/MA.


3 comentários

  1. Fábio Anchieta disse:

    Perfeito. Sempre uma satisfação em ler os seus escritos amigo.
    Na noite de ontem estive a assistir a palestra do Saudoso Osvaldo Serrão, e pela manhã me deparo com essa bela homenagem. Seria obra da lei da atração ou o espírito dos grandes advogados do júri estaria a nos guiar?

  2. Fábio Anchieta disse:

    Sempre uma satisfação ler os seus escritos meu amigo.
    Ontem a noite mesmo estava assistindo a palestra do saudoso Osvaldo Serrão na OAB/SP (https://www.youtube.com/watch?v=u69zOaRZcec), e agora pela manhã me deparo com essa bela homenagem. Seria obra da lei da atração ou os espíritos dos grandes advogados do júri estariam a nos guiar?

    • webmaster@jimmyadvocacia.com.br disse:

      Algo transcendente certamente nos envolve nos une, caro amigo. Obrigado por ler e dividir o feedback conosco. Muito obrigado.

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