Medida protetiva de urgência, tipicidade e estado totalitário.



Medida protetiva de urgência, tipicidade e estado totalitário.

Medida protetiva de urgência, tipicidade e estado totalitário.

Entrou em vigor a lei n. 14.550/23, que adicionou ao art. 19 da Lei Maria da Penha alguns parágrafos, dentre eles o §5º, que diz: “As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.

Desde priscas eras, seria impossível conceber qualquer intervenção penal – cautelar ou definitiva – sem que a conduta do agente estivesse contornada aos limites linguísticos trazidos pelo tipo, o qual é construído pelo legislador “a partir da realidade que vem a recortar, elevando ao plano abstrato ações que constituem um todo indecomponível, cujas partes se inter-relacionam e se polarizam em torno de um sentido, de um valor, que se apresenta negado pela ação delituosa”.[1]

Toda a doutrina penal moderna foi construída sob o fundamento de que a tipicidade, na teoria do delito, constituir-se-ia o primado sistemático para a visualização do injusto. Não seria permitido, segundo essa ideia, que o Estado violasse o direito ambulatorial do cidadão, com sustento apenas na eventual opinião de determinado agente público e ausente a conformação tipológica à lei.

Então, foi – e é – o juízo de tipicidade a melhor maneira de se vencer a possibilidade latente de arbítrio e permitir o controle do poder penal. O tipo, portanto, guarda prioridade teleológica e funcional na construção do sistema penal. Deve ser entendido, na sua primeira faceta, como “tipo de garantia”, pois reúne ele o “conjunto de elementos que a lei tem de referir para que se cumpra o conteúdo essencial do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege.[2]

O tipo também atua na definição do erro, pois é necessário que o agente conheça todos os elementos da descrição legal para que se possa afirmar sua conduta dolosa, bem como individualizar qual delito foi praticado. Aqui sua função é “dar a conhecer ao destinatário que tal espécie do comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico”.[3]

As medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha desempenham importante função na proteção da ofendida, atuando antes mesmo que se defina, em processo judicial, a culpabilidade do agente, como é próprio de toda medida cautelar.

Portanto, têm natureza cautelar híbrida, ou seja, cível, mas sobretudo criminal[4], e por isso mesmo não podem ser aplicadas como efeito automático da suposta prática delituosa e se submetem à formatação principiológica do direito e processo penal, consoante explica De lima, pelo que assenta: “à luz da regra de tratamento que deriva da presunção de inocência, nenhuma dessas medidas pode ser aplicada sem que existam os pressupostos do fumus comissi delicti e do periculum libertatis”.[5]

Pretender o contrário é trabalhar a favor do expansionismo penal, que tem como causa, entre outras, a sensação social de insegurança, originada pela revolução das comunicações, a qual por consequência gera a perplexidade pela ausência do domínio do curso dos acontecimentos e da perda de referências valorativas objetivas e generalizáveis. Este quadro faz prevalecer o pragmatismo sem premissas materiais, que deságua na seguinte conclusão: “se tudo é igualmente verdadeiro [do processo com trânsito em julgado até as declarações unilaterais, sem provas e sem enquadramento típico], então acaba a força impondo-se como o argumento mais poderoso. E ante tal constatação, é forçoso convir que é difícil não sentir insegurança”, nos dizeres de Silva Sánchez[6].

Some-se a isso o apelo midiático a muitos “sujeitos passivos” da (e criados na) sociedade do Estado de bem-estar, que estipulam novas fronteiras (mais censuráveis) do risco permitido como traço limitativo da intervenção penal[7]. Verifica-se, então, que a “diminuição dos níveis de risco permitido é produto direto da sobrevaloração essencial da segurança – ou da liberdade de não padecer – diante da liberdade (de ação)[8].

Por isso Garapon nota que a opinião pública pós-moderna está “mais inclinada a se identificar com a vítima do que com o árbitro, com o governado do que com o governante, com o contrapoder do que com o poder, com o justiceiro do que com o legislador”, situação essa que “prepara, sem dúvida, o terreno para o populismo[9].

Nessa quadratura, não há como não concebermos, perplexos, o perigo que acomete o cidadão diante de mais uma relativização normativo-penal, cuja finalidade não consegue suplantar a perda constitucional e civilizatória de sua incidência. A medida protetiva de urgência tem em sua órbita legal todo um leque de consequências graves, desde sua decretação, como acima dito, o seu descumprimento, que enseja crime próprio (art. 24-A da Lei Maria da Penha), até seu consequente processamento, que se dá perante o poder judiciário, o qual, em tese, deveria adstringir-se à curvatura típica.

Perceba-se que em relação ao bem jurídico penal deve existir filtro constitucional, que, no caso da medida cautela oriunda da lei Maria da Penha, submete-se à lupa da ofensividade, insignificância, culpabilidade, intervenção penal legalizada, intervenção mínima, subsidiariedade, idoneidade e proporcionalidade[10], de maneira que, não supridas estas etapas, a regra é a não decretação de medida cautelar.

Não poderia, assim, toda uma intervenção eminentemente penal iniciar-se sem que a valoração típica da conduta desse uma resposta, positiva, minimamente aproximada ao que reclama a dogmática. Permitir que a autoridade possa limitar a liberdade de alguém, mesmo diante da completa ausência de adequação tipológica criminal, é entregar ao arbítrio fascista da vontade de poder, que se alimenta de um voraz crescimento da narrativa persecutória, com os apelos de que os fins justificam os meios.

Maggiore já indagava que, diante de um fato não incriminado por nenhuma disposição legal, o que o Estado faria? Ele mesmo responde, em clara intelecção: “O Estado liberal, frente a uma eventualidade semelhante, permanecerá inerte (…); o Estado totalitário, ao contrário, ordenará a seus juízes que punam, criando eles a norma que falta[11]. Pretendemos um estado penal liberal ou um estado penal totalitário?


[1] Reale Júnior, Miguel. Fundamentos do direito penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 107.

[2] Figueiredo Dias, Jorge de. Direito Penal – Parte Geral. t.1. 1 ed. brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 284.

[3] Idem, p. 285.

[4] Discordamos de Valéria Diez Scarance Fernandes e Rogério Sanches Cunha, que defendem ser as MPU´s medidas de natureza cível, pelo fato de não necessitar sequer de boletim de ocorrência para serem deferidas. Veja-se: “Embora o STJ tenha entendimento de que parte das medidas protetivas têm natureza de cautelar criminal, com a nova lei, todas as medidas protetivas – por expressa previsão legal – têm natureza cível, já que podem ser deferidas independentemente de registro de Boletim de Ocorrência, inquérito policial instaurado ou processo criminal em curso”. Encontrado em: Lei 14.550/2023: Altera a Lei Maria da Penha para garantir maior proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar – Meu site jurídico (editorajuspodivm.com.br). Acesso em 28 abr 2023. Este argumento não se sustenta porque o boletim de ocorrência é uma comunicação unilateral da notitia criminis, a qual pode ser transmitida por qualquer meio à autoridade. Outrossim, o fato de poder serem deferidas independente do início da persecução criminal formalmente dita, não desnatura sua faceta criminal, mesmo porque a MPU terá autos próprios onde serão discutidas sua manutenção, extensão ou extinção imediata, a partir da defesa ali oferecida, bem como pode ser impugnada mediante habeas corpus. Neste caso, sua natureza criminal consiste na restrição da liberdade do indivíduo, que só é permitida nos casos cíveis, pela Constituição, na hipótese do devedor de alimentos.

[5] De Lima, Renato Brasileiro. Legislação especial criminal comentada. v. único. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1.287.

[6] Silva Sánchez, Jesús-María. A expansão do direito penal. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 41-43.

[7] Idem, p. 52-53.

[8] Idem, p. 54.

[9] Garapon, Antoine. Juiz e a democracia – o guardião das promessas. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 98.

[10] Ishida, Válter Kenji. Bem jurídico penal moderno. 2 ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 152.

[11] Maggiore, Giuseppe. Diritto Penale Totalitario, p. 158-159, apud Ferrajoli, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 345.

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, presidente da ABRACRIM/MA, L.L.M em direito penal econômico pelo IDP, especialista em ciências penais e articulista com livros publicados.


Sem comentários

    Seja o primeiro a comentar!

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *