Lei para inglês ver no pacote anticrime.



Lei para inglês ver no pacote anticrime.

              A expressão “para inglês ver”, comumente utilizada em terras brasileiras e lusitanas, é proveniente, ao que tudo indica, de certa ocasião no período regencial do Brasil em que foram produzidas leis contra a escravidão, após forte pressão da Inglaterra. Tais leis, no entanto, eram inócuas na prática, e assim foram apelidadas de leis “para inglês ver”, ressaltando seu caráter demagógico[1].

              Inúmeras leis existem assim em nosso ordenamento, fruto do famigerado direito penal simbólico que, na falsa intenção de reprimir a conduta criminosa, acaba por ser completamente sem efetividade.

              Também temos exemplo na lei processual, ao observarmos a modificação trazida ao art. 316 do CPP, pela lei nº 13.964/19 – pacote anticrime, que acrescentou o parágrafo único, verbis: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.” Tem o juiz ou tribunal, portanto, o dever de revisar, a cada três meses, a necessidade de manutenção da prisão preventiva decretada.

Mas, e se o juiz ou tribunal não o fizer ou extrapolar o prazo de noventa dias para fazê-lo, o que ocorrerá? Bem, analisemos por partes.

Em primeira instância, logo que constatada o esgotamento dos 90 dias sem revisão do magistrado, poderia o advogado peticionar nos autos, informando do descumprimento. O juiz teria duas alternativas: ou revogava a prisão, afirmando que não mais subsistiriam os elementos indicadores da necessidade acautelatória, ou dizia ainda estarem presentes estes os motivos, razão pela qual manteria a preventiva. A questão é que, em qualquer dos casos, a ilegalidade decorrente da não reanálise perderia o objeto! O que se poderia cogitar, talvez, seria uma reprimenda administrativa ao juiz, perante a corregedoria, mas mesmo esta hipótese é distante e não teria o condão de revogar a cautelar.

              Em segunda instância, a alternativa do advogado seria a impetração de habeas corpus ao tribunal. Porém, dificilmente seria concedido a ordem em sede de liminar, pois o desembargador poderia pensar que, ao menos em tese, naquele momento, estaria suprimindo uma instância, já que a revisão não foi exercida pelo juízo de base e os motivos da omissão não estavam explicados. Assim, negada a medida liminar, o tribunal determinaria a intimação da autoridade coatora para prestar informações e o juiz, ao recebê-la, aproveitaria o prazo para reanalisar os fundamentos da preventiva e revogá-la ou não. Em qualquer caso estaria, como na primeira hipótese acima dita, superada a ilegalidade e, além disso, o habeas corpus perderia o objeto.

              Quando o código traz este dever de reanálise sem a imposição de sanção ou consequência imediata, a norma se torna mera “lei para inglês ver”. Na prática, pois, pura demagogia que só serve para enxertar com espumas de sabão nosso já combalido sistema processual.



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_para_inglês_ver.

Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, especialista em ciências penais e vice-presidente da ABRACRIM/MA.


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