HIPÓTESE DE SUPERAÇÃO DA SÚMULA 330 DO STJ.



HIPÓTESE DE SUPERAÇÃO DA SÚMULA 330 DO STJ.

O Capítulo II do Código de Processo Penal versa sobre o rito adotado para o processamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos. Especificamente, estabelece que o réu será notificado para apresentar defesa por escrito no prazo de quinze dias e, só depois, será citado para apresentação da resposta à acusação. Assim a conjugação do art. 514 e 517 do CPP que dizem: “Art. 514 Nos crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do acusado, para responder por escrito, dentro do prazo de quinze dias”; “Art. 517.  Recebida a denúncia ou a queixa, será o acusado citado, na forma estabelecida no Capítulo I do Título X do Livro I.”

Os crimes afiançáveis a que faz referência o artigo 514 abarcam apenas os arts. 312 a 326 do Código Penal, consoante o que diz também jurisprudência: “A jurisprudência desta Corte encontra-se consolidada no sentido de que a notificação prévia, estabelecida no art. 514 do Código de Processo Penal, somente se aplica aos crimes funcionais típicos, previstos nos arts. 312 a 326 do Código Penal, situação não ocorrente na hipótese. 2- Ordem de habeas corpus denegada. (STJ – HC 179.474 – (2010/0129874-8) – 5ª T. – Relª Minª Laurita Vaz – DJe 23.08.2012)”.

Porém, a respeito do tema, o Superior Tribunal de Justiça editou a súmula nº 330, que consagra a regra segundo a qual não há nulidade quando o réu deixar de ser notificado para a defesa prévia se o processo vem acompanhado de inquérito: “É desnecessária a resposta preliminar de que trata o artigo 514 do Código de Processo Penal, na ação penal instruída por inquérito policial”.

Na lição de NUCCI, a razão que permitiu a construção da exceção do art. 514 CPP aos funcionários públicos foi a ausência de inquérito policial, dando sustentação à denúncia, razão pela qual, quando o inquérito for feito, inexiste razão para seguir esse rito”[1], pois nesse tipo de crime, de regra, não seria necessário investigação preliminar anterior, dada a redação do art. 513 do mesmo Código, onde bastaria ao promotor juntar à denúncia os documentos que entendia necessários à comprovação da justa causa, independente de inquérito, embora difícil essa hipótese[2].

Ou seja, com a existência de um inquérito acompanhando a denúncia, supõe-se ter havido demonstração de indícios mínimos de materialidade e autoria e, desta forma, “isso supriria eventuais denúncias levianas contra servidores públicos[3].

Mas o inquérito policial não serve apenas para agregar elementos que auxiliem a proposição acusatória, como faz pensar a leitura apressada e solitária do §1º do art. 2º da Lei 12.830/13: “Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

Igualmente serve o caderno administrativo policial, sempre que possível (pois impossível se o imputado não for localizado), possibilitar ao investigado sua manifestação por meio do interrogatório para que realize sua autodefesa.

E qual o fundamento desta afirmativa? Ora, é ampla a compreensão de que o inquérito é um procedimento administrativo[4], razão pela deve incidir-lhe a regra do art. 5º, LV, da Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

Evidente que a ampla defesa e o contraditório no procedimento administrativo não tem a mesma largura e profundidade que no processo judicial, existindo, como preceitua LEONARDO MARCONDES MACHADO, de forma limitada (defesa) e mitigada (contraditório), para em seguida acrescentar que, no que toca à autodefesa, “o interrogatório policial parece ser o momento mais adequado para tanto, uma vez que nesse ato será dada a oportunidade de o investigado se fazer presente diante da autoridade responsável pela investigação (contato pessoal), bem como fazer uso (ou não) da palavra conforme o seu interesse. Embora sem a mesma dialética verticalizada do processo e, portanto, com menores chances de influência, ainda assim poderá o investigado interferir no convencimento do delegado de polícia responsável pela presidência do feito”.[5]

Até mesmo a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em seu art. 41, consagrou a necessidade de interrogatório durante a fase inquisitorial: “1. Todas as pessoas têm direito a que seus assuntos sejam tratados pelas instituições e órgãos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável. 2. Este direito compreende: o direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravelmente. (…)”.

Portanto, em qualquer inquérito policial finalizado, supõe-se que o acusado teve direito ao interrogatório para exercício de sua autodefesa, ainda que mitigada, razão pela qual o verbete sumular 330 do STJ, acima citado, vai sentenciar que o rito do art. 514 do CPP deverá ser superado caso haja inquérito acompanhando a denúncia, pois, ao invés de manifestar de manifestar-se no interrogatório (que seria o certo), o acusado só poderá fazê-lo na defesa preliminar do rito processual especial.

É sabido que doutrina e jurisprudência massivas invocam o princípio pas nullité sans grief, desprezando-se o entendimento de que o desrespeito à forma processual implica grave lesão ao princípio constitucional que ela tutela, constituindo-se um defeito processual insanável (ou uma nulidade absoluta, se se preferir). Portanto, o correto, diante da ausência de defesa preliminar, deveria ser o reconhecimento da nulidade, e, após, a consequente ineficácia do ato[6].

HENRIQUE BADARÓ não se esquiva, e arremata que “se há um modelo, ou uma forma prevista em lei, que foi desrespeitada, o normal é que tal atipicidade gere prejuízo, sob pena de se admitir que o legislador estabeleceu uma formalidade absolutamente inútil[7]. Portanto, no processo penal, insista-se, FORMA É GARANTIA E LIMITE DE PODER.

Seguindo a fundamentação, lê-se no art. 564, IV, do Código de Processo Penal: “Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (…) IV – por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”. É clarividente que, rompida a exigência do art. 514, fora quebrada uma formalidade essencial estabelecida por lei federal para que se garanta o processamento de um servidor público que cometa crime funcional. E se não fora demonstrada pelo julgador, ou pelo promotor, ou suprida a falta existente no ato, ELE É NULO!

Há doutrina de relevo que encampa a tese aqui defendida, na voz de TÁVORA e ALENCAR[8], que dizem:

“Desta forma, se a inicial acusatória estiver lastreada em inquérito policial, a defesa preliminar pode ser suprimida, sem a necessidade de intimação, não havendo prejuízo. Somos veementemente refratários a este entendimento. Não se pode suprimir um ato da defesa pelo simples fato da inicial estar embasa em inquérito. A defesa preliminar deve ser vista como ato útil a levar ao magistrado elementos que o permitam realizar um juízo mais equilibrado de admissibilidade da inicial, e em alguns casos, até mesmo rejeitá-la pelos elementos que lhe são trazidos. Admitir a supressão deste momento pelo fato da prévia realização do inquérito é violar de morte o devido procedimento, além do contraditório e da ampla defesa. Se isto ocorrer, haverá nulidade, e por se tratar de ato que tumultua arbitrariamente o procedimento (…)” (grifou-se)

Há julgado do Supremo Tribunal Federal que igualmente faz entender desta maneira:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES FUNCIONAIS AFIANÇÁVEIS. DENÚNCIA LASTREADA EM INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO RITO ESTABELECIDO NO ARTIGO 514 DO CPP. VIOLAÇÃO DA GARANTIA DA AMPLA DEFESA (CONSTITUIÇÃO DO BRASIL, ART. 5º, INCISO LV). Crimes funcionais típicos, afiançáveis. Denúncia lastreada em inquérito policial, afastando-se o rito estabelecido no artigo 514 do Código de Processo Penal. A não-observância de formalidade essencial em procedimentos específicos viola frontalmente a garantia constitucional da ampla defesa. Ordem concedida. (STF – HC: 95402 SP, Relator: EROS GRAU, Data de Julgamento: 31/03/2009, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-084 DIVULG 07-05-2009 PUBLIC 08-05-2009 EMENT VOL-02359-04 PP-00688) (grifou-se)

Todavia, a jurisprudência e algumas vozes doutrinárias entendem que a ausência de intimação do acusado para que se ofereça defesa preliminar antes do recebimento da denúncia, sendo a ação lastreada em inquérito policial, é causa de nulidade relativa, pois enfrenta a necessidade de superação da regra do pas te nullité sans grief, já acima enfrentado.

Mesmo assim, ainda que não se concorde com a aplicação da dita regra, há uma hipótese em que o prejuízo é evidente, que é quando o inquérito que acompanha a denúncia por crime funcional não ofertou a possibilidade do investigado (que agora é acusado), de defender-se por meio de seu interrogatório, razão pela qual a súmula 330 do STJ deve ser afastada, declarando-se nulo o processo até o recebimento da denúncia, para, sem seguida, ser possibilitada a defesa preliminar.

Pode-se argumentar no sentido de que o inquérito policial é despiciendo para o oferecimento de denúncia criminal, pois o Ministério Público não está atrelado à conclusão do Delegado de Polícia, mas esta é uma posição perigosa, pois a supressão de uma fase persecutória prévia à imputação processual criminal é absolutamente questionável, em face do necessário filtro à estigmatização de uma imputação criminal e de um processo criminal[9].

Portanto, em crimes funcionais, se houver inquérito (uma hipótese de denúncia sem inquérito, hoje, é praticamente impossível), este deverá ter oportunizado o interrogatório, mesmo que com os elementos colhidos antes dele o Ministério Público já se sinta confortável para ofertar a denúncia, afastando-se por completo a aplicação da súmula 330 do STJ.


[1] NUCCI, Guilherme de Sousa. Código de Processo Penal Comentado. 17 ed. São Paulo: 2018, p. 1.248.

[2] Art. 513.  Os crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, cujo processo e julgamento competirão aos juízes de direito, a queixa ou a denúncia será instruída com documentos ou justificação que façam presumir a existência do delito ou com declaração fundamentada da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas.

[3] NUCCI, 2018, 1.248.

[4] AVENA, Norberto Avena. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 148; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v.1. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 176; p. 240.

[5] https://www.conjur.com.br/2018-set-04/academia-policia-inquerito-policial-goza-contraditorio-mitigado-defesa-limitada. Acesso em 25 nov 2020.

[6] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 9 Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1.130.

[7] Apud, LOPES JR. p. 1130.

[8] TAVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 9 Ed. Salvador: Jus podivm, 2014, p. 954.

[9] GIACOMOLI, Nereu José. Qualidade do Inquérito Policial. In Polícia e investigação no Brasil/Daniel Jose Lerner…[et al.]; 1 ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016.

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6 comentários

  1. Paulo Mota disse:

    Parabéns, excelente material

  2. Delegado Laeldo disse:

    DOUTO CAUSÍDICO… ENTENDIMENTO QUE SE AMOLDA A NOSSA DEFESA NO RECURSO ESPECIAL. O QUE NÃO RESPEITOU O TJTO EM SUA ANÁLISE NO CASO EM CONCRETO TRAZENDO ASSIM PREJUÍZO IRRETOCÁVEL NO QUANTO O VICIO DE FORMALIDADE PROCESSUAL NÃO É AMPLAMENTE RECONHECIDO. DOUTA ESCOLA MESTRE DA DEFESA CRIMINAL… UM DOS BRILHANTES QUE NEM EM SÃO PAULO TIVE OPORTUNIDADE DE CONHECER.

  3. Curso Online disse:

    Sou a Marina Almeida, gostei muito do seu artigo tem
    muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.

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