É crime de importunação sexual o envio de um único nude sem autorização?



É crime de importunação sexual o envio de um único nude sem autorização?

Da ausência de elemento objetivo do tipo (contra alguém)
O tipo penal da importunação sexual é assim descrito: “Artigo 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena — reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave”.

A doutrina se debruçou sobre o novel delito e diante da expressão “contra alguém”, que é elemento objetivo do tipo, tem entendido que o ato deve ser praticado “na presença de alguém”.

A assessoria de comunicação social do TJ-DF, em explicação destinada à sociedade, manifesta-se sobre a expressão da seguinte forma em seu sítio [1]:

“O artigo 215-A do CP também condena a prática do ato libidinoso (que tem objetivo de satisfação sexual) na presença de alguém, sem sua autorização. Por exemplo: apalpar, lamber, tocar, desnudar, masturbar-se ou ejacular em público, dentre outros.”

Ainda quando da primeira abordagem jurídica sobre o delito, há quatro anos, quando criado, manifestou-se a referida corte desta maneira [2]“O artigo descreve como crime o ato de praticar ato libidinoso (de caráter sexual), na presença de alguém, sem sua autorização e com a intenção de satisfazer lascívia (prazer sexual) próprio ou de outra pessoa”.

O magistério do festejado professor Bitencourt é neste mesmo sentido, ao afirmar que a satisfação da lascívia contra alguém equivale a dizer que deva ser praticada “na presença de alguém” [3].

Para melhor compreensão, ele dá exemplos clássicos, como ejacular na presença ou na própria vítima (na presença ou contra alguém), conduta bem distante envio de “nudes”, ainda que sem autorização do receptor, sobretudo em termos de reprovabilidade da conduta e resultado:

“O tipo descrito no artigo 215-A prevê uma única modalidade de conduta delituosa, qual seja, praticar — na presença de alguém —, isto é, na presença da vítima, qualquer ato libidinagem, como é o caso do exemplo clássico, ejacular na presença, ou na própria vítima, como ocorreu no interior de coletivos urbanos deste país.

Bitencourt mais uma vez assinala, agora em sua magnum opus, que é necessário que os atos de libidinagem devam ser exercidos “na presença ou contra a vítima”. Veja-se:

“Enfim, a prática de atos de libidinagem, na presença ou contra a vítima, constrange-a a assistir atos de luxúria, de lascívia ou de libidinagem de outrem, sem a sua anuência, trazendo em seu bojo uma violência intrínseca suficientemente idônea para atingir a liberdade, a honra e dignidade sexuais da ofendida (ou ofendido), que não pode ser obrigada a sofrer constrangimento imoral e degradante dessa natureza” [4].

Nota-se que todos os exemplos citados como forma de cometimento do crime de importunação sexual exigem a presença de alguém, e esta presença não é virtual, mas real, e tem de ser capaz de tolher a liberdade sexual e ofender a dignidade da vítima, a partir de sua expressão pública.

Como exercício de comparação, há no STJ julgado onde se discutia a existência do dolo específico (satisfação da lascívia) referente ao crime do artigo 218-A [5]. Concluiu-se que a mera presença de menor no local onde se praticava relações sexuais não era suficiente para inferir o dolo especial da satisfação da lascívia por parte dos autores.

“RECURSO ESPECIAL. PENAL. ARTIGO 218-A DO CÓDIGO PENAL. SATISFAÇÃO DE LASCÍVIA MEDIANTE PRESENÇA DE CRIANÇA OU ADOLESCENTE. CRIME FORMAL. INTENÇÃO DE SATISFAZER O DESEJO LASCIVO EM RAZÃO DE O ATO LIBIDINOSO SER VISUALIZADO PELO MENOR. NECESSIDADE. ELEMENTAR DO TIPO PENAL. ACÓRDÃO RECORRIDO. REVISÃO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA Nº 7 DO STJ. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. (…) 3. No caso concreto, segundo o acórdão recorrido, não ficou provado que a presença da menor no local, enquanto ocorria a prática da conjunção carnal mediante violência, também teve por escopo a satisfação da lascívia do Recorrido. (…)5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (STJ  REsp: 1824457 RS 2019/0194474-6, relator: ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 18/08/2020, T6  SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/09/2020).”

Mutatis mutandis, não se pode inferir automaticamente a existência da satisfação da lascívia a partir do mero envio de uma foto íntima. Portanto, por ausência de elemento objetivo da descrição típica do crime de importunação sexual na espécie, inexiste delito na conduta de um único envio de “nudes” sem autorização do receptor da mensagem.

Da ausência de elemento subjetivo especial do tipo (satisfação da lascívia)
Primeiramente, é necessário esclarecer o conceito de ato libidinoso, que segundo a doutrina gaúcha citada, é “todo ato lascivo, voluptuoso, que objetiva prazer sexual, aliás, libidinoso é espécie do gênero atos de libidinagem, que envolve, inclusive, a conjunção carnal (que, por sua natureza e gravidade, não integra este tipo penal)[6].

Lopes Jr, Morais da Rosa, Brambilla e Gehlen ensinam que “o elemento subjetivo sempre será o dolo direto e especial, tal seja vontade dirigida à satisfazer da própria lascívia ou de terceiros” [7]. Ou seja, o ato deve objetar prazer sexual ao agente pela sua própria execução. Nessa esteira, o envio de uma correspondência na qual se requere ao destinatário a prática de ato libidinoso não é já a execução do ato libidinoso em si, mas uma tentativa de perpetração futura, que se dará caso o (a) receptor (a) aceite.

Carvalho [8] afirma, acentuando ainda mais a posição aqui defendida, que é necessário a conduta físico-erótico, que resta ausente na conversa on-line, bem como a presença indubitável da prova quanto à finalidade de satisfação da própria lascívia através do ato. À frente, deixa claro que o recebimento indesejado de nude é fato atípico. Veja-se:

“Isso ocorre porque o entendimento que se partilha é no sentido de que para a configuração do crime exige-se o requisito objetivo tipológico ‘ato libidinoso’, que ocorreria mediante conduta física e erótica (físico-erótica), o que restaria ausente na conversa online.
Ademais, para a respectiva configuração seria necessário ficar provado, de forma indubitável, que o agente enviou o “nude” para satisfazer sua lascívia ou a de terceiro —  fator também pouco alcançável.
(…) filia-se à ideia de que o tipo inovador de Importunação Sexual não abarcaria o recebimento indesejado do “nude”, concluindo ser mais adequado a discussão em âmbito da esfera cível, com um eventual pleito indenizatório, por exemplo“.

É por isso que, por si só, um único envio de “nude” sem autorização não é crime (fato atípico), conforme já sinaliza a doutrina que se forma em torno do tema.

Por fim, entende-se, todavia, que o reiterado envio de “nudes” sem autorização do receptor pode configurar o crime de perseguição, previsto no artigo 147-A do Código Penal [9], pois tal conduta, repetidas vezes praticada, é capaz de perturbar a esfera de privacidade e liberdade da vítima.

[1] Encontrado em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/importunacao-sexual-x-assedio-sexual. Acesso em 22 jun 2022.

[2] Encontrado em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/direito-facil/edicao-semanal/importunacao-sexual. Acesso em 22 jun 2022.

[3] Encontrado em: https://www.conjur.com.br/2018-set-30/cezar-bitencourt-anatomia-crime-importunacao-sexual. Acesso em 22 jun 2022.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Comentários ao Código Penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1.650, livro digital.

[5] Artigo 218-A.  Praticar, na presença de alguém menor de 14 anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem:

[6] BITENCOURT, 2019, p. 1.650.

[7] Encontrado em https://www.conjur.com.br/2018-set-28/limite-penal-significa-importunacao-sexual-segundo-lei-1378118. Acesso em 23 jun 2022.

[8] Encontrado em https://jus.com.br/artigos/86288/enviar-nudes-sem-solicitacao-pode-configurar-infracao-penal. Acesso em 23 jun 2022.

[9] Artigo 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

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Artigo originalmente publicado na Conjur.

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