Ataque de súbito, pela frente, caracteriza necessariamente traição ou emboscada?



Ataque de súbito, pela frente, caracteriza necessariamente traição ou emboscada?

A reflexão ora posta ao público pretende discutir a hipótese, muito comum nos crimes de competência do tribunal do júri, de se a ação homicida perpetrada, de súbito, de frente para a vítima, necessariamente caracteriza traiçãoemboscada ou qualquer outro meiodissimulatório que dificulte ou torne impossível sua defesa e, assim, se amolde, ou não, à qualificadora prevista no inciso IV, §2º, artigo 121 do Código Penal.

A referida norma tem hermenêutica ampliada pelas múltiplas expressões, sobretudo aquela que diz “qualquer outro meio”, pois tornam infinitas as possibilidades de subsunção, desde que descrita corretamente a conduta que a conforme.

Em face disso, necessária uma correta e detida exegese dos termos legais, na esteira da mais autorizada doutrina e mais recente jurisprudência dos tribunais pátrios.

1 – Da traição. Primus, cumpre descaracterizar cada um dos elementos qualificadores do inciso IV, e o primeiro deles é a traição, que, na hipótese aventada, não chega a ocorrer, considerando a diferença entre traição e surpresa, trazida nas palavras de Nucci [1]:

“trair significa enganar, ser infiel, de modo que, no contexto do homicídio, é a ação do agente que colhe a vítima por trás, desprevenida, sem ter esta qualquer visualização do ataque. O ataque súbito, pela frente, pode constituir surpresa, mas não traição.” 

Complementando, Bitencourt esgarça a exegese do inciso IV, artigo 121, do CP e afirmo que o termo “à traição”, “significa o ataque sorrateiro, inesperado, a deslealdade, não podendo se caracterizar, por exemplo, por haver um golpe letal ter sido desferido pelas costas da vítima” [2].

Ora, se até mesmo o golpe pelas costas não induz necessariamente a qualificadora do inciso IV, tanto mais o ataque frontal, operado, por exemplo, logo após acirrada discussão ou afronta, situações cujo curso anormal era antecipável mentalmente por quem as provocou.

2 – Da emboscada. De sua vez, o termo emboscada, segundo o Dicionário Aurélio [3], traduz-se como “espera para atacar de improviso quem passa. Cilada, traição”. Novamente na lição de Bitencourt [4], emboscada é a “tocaia, a espreita, verificando-se quando o agente se esconde para surpreender a vítima; é a ação premeditada de aguardar oculto a presença da vítima para surpreendê-la como ataque indefensável”.

O ataque pela frente só poderá caracterizar emboscada, portanto, se anteriormente o agente houver se escondido, de modo a colocar-se em posição frontal e, num lapso de segundo, operar o ataque.

3 – Da dissimulação. Conforme Regis Prado, dissimulação é o “encobrimento dos próprios desígnios” [5]. Não há aqui conformação da hipótese, pois se o ataque ocorre repentinamente, como forma natural de defesa ou intenção mesma de homicídio, sem que haja qualquer atitude por parte do agente que sugira a intenção de encobrir o seu desígnio, impossível, pois, a dissimulação.

4 – De qualquer recurso que dificulte ou impossibilite a defesa da vítima. Estando claro que não ocorrera traição, emboscada ou dissimulação, restaria a hipótese aberta da expressão qualquer outro recurso, que abrangeria infinitas possibilidades. Todavia, neste caso, a conduta deve vir delimitada e expressa na denúncia, por exigência dos artigos 41 e 395 do CPP.

São estes aportes que viabilizam a defesa plena do acusado, guarnecendo assim a declaração principiológica do contraditório. É que em face do princípio do in dubio pro reo, não há um equilíbrio entre as partes no sentido do livramento de cargas assim como na necessidade de aproveitamento das chances processuais, se não for obedecida esta regra.

Portanto, como afirma Jardim, “a ilicitude ou culpabilidade devem ser depreendidas das circunstâncias do fato principal, narradas necessariamente na peça acusatória, sendo ônus do autor provar suficientemente a existência destas circunstâncias que afirmou” [6].

No mesmo sentido é o ensinamento de Grinover, Scarance Fernandes e Gomes Filho, que explicitam ser conditio sine qua non para instauração válida do processo a exposição não somente da ação transitiva, mas a identificação também “[d]a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que a determinaram  a isso  (cur), a maneira por que a praticou (quomodo), o lugar onde praticou  (ubi), o tempo (quando)’ (João Mendes Junior)” [7]

Desta feita, a exposição do fato criminoso tido como qualificador do homicídio inclui a obrigatoriedade de se revelar em qual das modalidades descritas no §2º, inciso IV, do artigo 121, do Código Penal incide o agente, ou de que forma foi atuou a reduzir ou impossibilitar a defesa da vítima.

O Tribunal de Justiça de Goiás já se manifestou no sentido de não reconhecer a qualificadora mesmo quando o ataque foi realizado de costas, pois houve discussão anterior, com ameaças de morte, entre agente e vítima, o que afastava a imprevisibilidade [8].

Se assim o é, tanto mais com o ataque de frente, após ameaças recíprocas entre vítima e agente, por exemplo.

O Tribunal de Justiça do Maranhão, no recurso em sentido estrito n. 005590/2017, de relatoria do desembargador José Luiz Oliveira de Almeida, oriundo do processo nº 0002495-82.2016.8.10.0040, cujas razões foram elaboradas por este advogado, já reconheceu a tese aqui defendida, no sentido de que, estando os envolvidos frente a frente, a discussão anterior ao ataque perpetrado contra a vítima afasta a qualificadora do inciso IV. Veja-se:

“(…) 6. Restando comprovado, às fartas, que o golpe fatal ocorreu durante acalorada discussão entre réu e vítima, sendo que ambos, a todo tempo, estavam frente a frente, mostra-se totalmente dissociada do contexto probatório a qualificadora do recurso que dificultou a defesa da vítima, o que enseja seu afastamento.
(…)
8. Recurso em sentido estrito parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido.”

Assim, demonstrado está que o ataque de súbito, pela frente, não caracteriza, necessariamente, a hipótese legal do inciso IV, §2º, sobretudo se ocorrido após entrevero verbal ou físico entre autor e vítima.

Fonte: Conjur.


[1] Nucci, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 392.

[2] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. v. 2. 9 Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 62.

[3] Encontrado em: https://dicionariodoaurelio.com/emboscada. Acesso em 26 jun 2023.

[4] Bitencourt, 2012, p. 63.

[5] Regis Prado, Luiz. Tratado de Direito Penal Brasileiro – v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 76.

[6] JARDIM, Afrânio Silva Jardim. Direito Processual Penal. 11 Ed. Editora: Forense, 2015, p. 214.

[7] GRINOVER, Ada Pelegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Nulidades do Processo Penal. 11 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 90-91.

[8] (…) Constatado que o acusado e a vítima tiveram uma desavença anterior, com juras recíprocas de morte, e que o ofendido foi alvejado nas costas, enquanto fugia de seu algoz, impõe-se a exclusão da qualificadora prevista no artigo 121, §2º, incisos IV, do Código Penal, porquanto não demonstrado, em termos de possibilidade, o contexto de imprevisão do ataque necessário e suficiente para impossibilitar ou dificultar a defesa da vítima. Apelo conhecido e parcialmente provido. (TJ-GO; ACr 0233109-60.2003.8.09.0011; Aparecida de Goiânia; Primeira Câmara Criminal; relator desembargador Itaney Francisco Campos; DJGO 14/07/2015; Pág. 141) CP, artigo 121

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, discente do LLM em direito penal econômico pelo IDP, presidente da ABRACRIM-MA, articulista com livros publicados.


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