Valoração negativa da personalidade e mentira do réu – nem tudo que reluz é ouro.



Valoração negativa da personalidade e mentira do réu – nem tudo que reluz é ouro.

O cálculo da pena-base é o primeiro importante passo para a definição da pena adequada a ser aplicada ao réu, ou seja, individualizar a sanção penal e entregar-lhe este direito.

Em nossa legislação, os elementos a serem observados para o início da dosimetria estão fincados no art. 59 do Código Penal, que tem a seguinte redação: “Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:

Segundo CIRINO, “essa norma exprime a concepção político-criminal fundamental do Direito Penal brasileiro, implementada pelo juiz através da sentença criminal condenatória, que define a necessidade e a suficiência da pena como retribuição equivalente da culpabilidade e como prevenção especial e geral do crime e da criminalidade.[1] Aqui, todavia, pretende-se analisar somente a personalidade do agente, que é um dos elementos a serem observados.

A doutrina nacional conceitua a personalidade do agente como “o conjunto de fatores psíquicos que condicionam ou influenciam o comportamento individual. Compreende os atributos de individualidade do ser humano, isto é, seu sexo, sua idade, sua formação familiar, seu nível educacional e profissional, suas convicções políticas, enfim, sua maneira de ser e de estar no mundo circundante”, e, ainda, “o caráter, o espírito, as características cognitivas, afetivas e físicas do indivíduo, desde que relevantes e pertinentes ao delito incurso (…)[2].

Trata-se de elemento de difícil identificação e delimitação, pois seu conceito “pertence mais ao campo da psicologia e psiquiatria do que ao direito, exigindo-se uma investigação dos antecedentes psíquicos e morais do agente, de eventuais traumas de infância e juventude, das influências do meio circundante, da capacidade para elaborar projetos para o futuro, do nível de irritabilidade e periculosidade, da maior ou menor sociabilidade, dos padrões éticos e morais, do grau de autocensura etc.[3] (grifou-se)

Como nossos operadores carecem de uma formação mais específica nestes campos de saberes (psicologia e psiquiatria), é prudente que o juiz, ao sentenciar, não se arrogue numa avaliação meramente moral do comportamento do réu, mas se atenha ao fato penal, pois não há consenso, por exemplo, sobre se a personalidade seria delimitada pelo ego, se abrangeria o superego como instância de controle ou censura pessoal, ou, por fim, incluiria as pulsões instituais do id, como fonte inconsciente da energia psíquica, regida pelo princípio do prazer[4].

Em atenção a estas dificuldades é que autores como GRECO acreditam que “somente os profissionais de saúde (psicólogos, psiquiatras, terapeutas etc.), é que, talvez, tenham condições de avaliar essa circunstância judicial. Dessa forma, entendemos que o juiz não deverá levá-la em consideração no momento da fixação da pena-base. Merece ser frisado, ainda, que a consideração da personalidade é ofensiva ao chamado direito penal do fato, pois prioriza a análise das características penais do seu autor[5]. Outros já consideram que somente através de laudo específico é que se poderia cogitar a análise da personalidade do réu.[6]

Em que pese a crítica, outra parte da doutrina defende que considerar a personalidade do autor é conferir-lhe a pena justa, pois todo homem é singular em si mesmo e, sobretudo, na realização do fato penal. Nesse sentido é a lavra de GOMES: “a consideração da pessoa do infrator e o escopo de prevenção especial impõem, na determinação da medida penal, a ponderação das condições não apenas de fato, mas relativas ao próprio homem, agente infrator, de modo a considerar, inclusive, sua personalidade[7].

Acompanha-lhe também NUCCI, que invoca, outrossim, a doutrina italiana, na pena de MANTOVANI: “a personalidade do autor é o momento iluminado e humanizante do Direito Penal moderno, cujo verdadeiro objeto não pode estar constituído pela ação de um homem que tenha uma personalidade própria[8].

Dadas estas premissas, indagar-se-ia: se o réu mentir em seu interrogatório, poderá ter a sua personalidade valorada negativamente para efeito de fixação de pena-base?

A resposta é não.

A afirmação sabidamente falsa dita pelo réu em seu interrogatório é, segundo nosso ordenamento, o desdobramento do exercício de um direito constitucionalmente protegido, a saber, o direito ao silêncio. Em voto de sua lavra, o Ministro Celso de Mello já se manifestou:

 

“(…) Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal. O direito de permanecer em silêncio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. E nesse direito ao silêncio inclui-se, até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a prática da infração penal. (…) (RHC 71421-/RS – Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Celso de Mello.” (grifou-se)

 

Assim, por congruência lógica, não pode o réu ser punido por ter exercido um direito que o ordenamento jurídico lhe outorga. É evidente que no campo exclusivamente moral a mentira sempre será censurada. Mas, nem tudo que reluz é ouro, e dentro das regras e princípios que norteiam a processualística penal, tal comportamento merece a neutralidade da avaliação do julgador, pois nunca se sabe, por exemplo, por quais motivos uma inverdade fora dita, ou uma verdade fora calada, a qual poderia, inclusive, ter motivação nobre na mente do autor. Excepciona-se o ônus processual e penal da utilização da mentira, entrementes, quando o réu realizar delação premiada, ocasião em que seu comportamento antiético terá como consequência a perda das benesses conseguidas com o acordo.

Veja-se que em recente decisão da lavra da juíza Teresa Cristina de Carvalho Pereira Mendes, titular da 1ª Vara da Comarca de São José de Ribamar-MA, no processo nº 109-88.2017.8.10.0058 (autos de livre consulta no site do TJ-MA), a personalidade do réu fora valorada negativamente por ter ele, segundo a julgadora, mentido. Afirma textualmente que a atitude fora “moralmente reprovável e eticamente criticável”, pois faltou com a verdade ao inventar “uma versão totalmente deslocada do que estava patente nos autos” (p. 23 da sentença).

As considerações acima embasam a crítica à dosimetria utilizada pela magistrada, que, certamente, terá sua sentença reformada em recurso da competente defesa técnica, pois nem mesmo o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão encampa este proceder, conforme se verifica nos julgados abaixo:

 

APELAÇÃO CRIMINAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO EMPREGO DE ARMA DE FOGO, CONCURSO DE PESSOAS E RESTRIÇÃO DE LIBERDADE DA VÍTIMA, PRATICADO EM CONCURSO FORMAL COM DOIS CRIMES DE CORRUPÇÃO DE MENORES.PLEITO ABSOLUTÓRIO. IMPROCEDÊNCIA.DOSIMETRIA. PENA-BASE. PERSONALIDADE. EXASPERAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. CONCURSO FORMAL PRÓPRIO. CARACTERIZAÇÃO. PENAS RESTRITIVAS DE DIREITO. INAPLICABILIDADE. I. Demonstradas a materialidade e a autoria do crime de roubo circunstanciado e dos delitos de corrupção de menores, mediante provas submetidas ao crivo do contraditório e da ampla defesa, a manutenção da decisão condenatória é medida que se impõe. II. O fato de o réu mentir em seu interrogatório não conduz à análise negativa de sua personalidade, sendo inidônea tal fundamentação para exasperar a pena-base. III. Aplica-se o concurso formal próprio entre os crimes de roubo circunstanciado e corrupção de menores, mormente por não restar demonstrado que o réu tenha, mediante uma só ação, praticado dois ou mais crimes, sendo estes resultantes de desígnios autônomos. IV. O quantumpenal – fixado acima de 4 (quatro) anos de reclusão – e a grave ameaça empregada pelo agente – com utilização de arma de fogo – estão a impedir a substituição da sanção constritiva de liberdade por restritivas de direito (art. 44 do CP). V. Apelação criminal parcialmente provida, para redimensionar a pena atribuída ao recorrente para 10 anos, 9 meses e 9 dias de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime fechado, além de 101 dias-multa. (ApCrim 0186252018, Rel. Desembargador(a) VICENTE DE PAULA GOMES DE CASTRO, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, julgado em 14/02/2019 , DJe 20/02/2019)

 

Ementa.Processual Penal. Arts. 12, da Lei nº 10.826/03; 33 e 35, c/c 40, VI, da Lei nº 11.343/06 (1º Recurso). Pleito absolutório quanto ao crime de tráfico e associação para esse fim. Não acolhimento. Materialidade e autoria demonstradas. Depoimentos de policiais. Meio de prova idôneo. Dosimetria. Pena-base. Personalidade considerada desfavorável sob o argumento de que o réu mentiu em juízo. Afastamento. Ato que não deve gerar consequências penais negativas. Pena redimensionada. Art. 157, § 2º, I e II, c/c art. 70, do CP (2º Recurso). Pretensão absolutória. Inviabilidade. Palavra da vítima. Conjunto probatório coeso e suficiente a lastrear um decreto condenatório. Pleito subsidiário de revisão da pena. Acolhimento. Afastamento de circunstâncias judiciais valoradas sem fundamentação idônea. Apelos conhecidos e parcialmente providos. 1. Se o acervo probatório constante nos autos demonstra, de forma harmônica e coesa, a materialidade e a autoria dos delitos imputados aos apelantes, não merecem acolhimento os pleitos absolutórios. 2. Os depoimentos de policiais constituem meio de prova idôneo a embasar o édito condenatório, mormente quando prestados ou corroborados em juízo, no âmbito do devido processo legal. Precedentes. 3. Nos crimes patrimoniais, a palavra da vítima, em harmonia com as demais provas dos autos, reveste-se de importância ímpar, revelando-se como norte probatório apto a conduzir à condenação. 4. O réu não pode ter a pena-base exacerbada, mediante valoração negativa da personalidade, por ter faltado com a verdade durante o seu interrogatório. Nossa legislação garante o direito ao silêncio e à não autoincriminação, podendo-se tolerar o ato de mentir em juízo sem que dele resulte consequências negativas ao acusado. 5. Provimento parcial dos apelos, para redimensionar as penas impostas aos apelante.   (ApCrim no(a) HCCrim 035416/2016, Rel. Desembargador(a) JOSÉ LUIZ OLIVEIRA DE ALMEIDA, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, julgado em 25/01/2018 , DJe 06/02/2018) (grifou-se)

 

Assim é que a sentença criminal não é lugar adequado para expressar o inconformismo do juízo pelo réu ter mentido, pois não cabe a este formular prova contra si mesmo (temu tenetur se detegere) e o ônus da prova cabe a quem o acusa.



[1] CIRINO, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 5 ed. Florianópolis: ICPC, 2012, p. 513.

[2] GUEIROS SOUZA, Artur de Brito; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal – volume único. 1 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 407, livro digital.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. v. 1. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 783, livro digital.

[4] CIRINO, 2012, p. 522.

[5] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 19 ed. Niterói: Impetus, 2017, p. 717, livro digital.

[6]Dúvidas não nos restam de que tal circunstância somente poderá ser analisada e valorada a partir de um laudo psicossocial firmado por pessoas habilitadas, o que não existe na grande maioria dos casos levados a julgamento”. SCHMITT, Ricardo Augusto. Sentença penal condenatória – teoria e prática. 9 ed. Salvador: Juspodvm, 2015, p. 123.

[7] Apud NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Forense, 2017, p. 859, livro digital.

[8] Idem, ibidem.

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, especialista em ciências penais e vice-presidente da ABRACRIM/MA.

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