Que é feminicídio? Qualificadora objetiva ou subjetiva? Quais as consequências?



Que é feminicídio? Qualificadora objetiva ou subjetiva? Quais as consequências?

O feminicídio é uma qualificadora do homicídio, introduzida ao Código Penal pela Lei nº 13.104/2015, que inseriu o inciso VI ao §2º do art. 121, que diz: “§2º Se o homicídio é cometido: (…) VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.”

A lei também introduziu uma norma penal explicativa do conceito de razões do sexo feminino, criando o §2º-A, assim descrito: “§ 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.”

Portanto, numa rápida leitura, o feminicídio seria o homicídio cometido contra a mulher, numa relação doméstica e familiar (inciso I) e/ou com menosprezo ou discriminação à condição da mulher (inciso II). Aí nasce a pergunta: no conceito de feminicídio, deverão sempre estar presentes ambos os incisos, ou basta o primeiro, que diz do contexto doméstico e familiar? Novamente: os incisos I e II do §2º-A deverão ser interpretados conjuntamente ou separadamente na formulação do conceito de feminicídio?

A nosso sentir, cometeu o legislador um equívoco. É que na ocorrência de feminicídio sempre haverá a existência de menosprezo à condição da mulher (inc. II), ainda que não seja cometido no âmbito doméstico ou familiar. Imagine-se uma discussão de bar que desague num homicídio, onde, pelas palavras do agente, restou claro tal discriminação. Assim, nem sempre ambos os incisos estarão presentes no feminicídio.

É por isso que não concordamos que a ocorrência de relação familiar ou doméstica (inc. I) seja suficiente para configuração da qualificadora, pois pode ser, por exemplo, que uma discussão entre um casal de desenlace em direção ao homicídio do homem contra a mulher, apenas porque aquele respondeu de maneira desproporcional um empurrão que tomou. Neste caso, poderia ser que o desprezo à condição feminina estivesse presente, mas não seria condição necessária, pois o revide desproporcional a um mero empurrão ocorre diuturnamente entre homens e estes o fazem não por menosprezar a condição do oponente, mas por raiva, ódio, sentimento de vingança, que podem caracterizar o motivo fútil ou torpe.

            Muito se poderia dizer a respeito da criação da figura deste delito. Todavia, ficaremos na sua definição, para que assim possamos responder se se trata de uma qualificadora subjetiva, objetiva ou mista. Tal conclusão tem inúmeras consequências práticas, como adiante se verificará.

É preciso de antemão deixar claro que qualificadora subjetiva é aquela que diz respeito à motivação da conduta perpetrada pelo agente; a qualificadora objetiva já diz respeito ao modo e meios de execução; a mista seria aquela que contém ambos os conceitos.

NUCCI, comentando o tema, define o feminicídio como “uma continuidade dessa tutela especial [especial proteção à mulher], considerando homicídio qualificado e hediondo a conduta de matar a mulher, valendo-se de sua condição de sexo feminino[1]. Portanto, entende o jurista paulista que se trata de qualificadora objetiva, conforme se verifica do excerto: “Trata-se de uma qualificadora objetiva, pois se liga ao gênero da vítima: ser mulher. Não aquiescemos à ideia de ser uma qualificadora subjetiva (como o motivo torpe ou fútil) somente porque se inseriu a expressão “por razões de condição de sexo feminino”. Não é essa a motivação do homicídio. O agente não mata a mulher porque ela é mulher, mas o faz por ódio, raiva, ciúme, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, motivos variados, que podem ser torpes ou fúteis; podem, inclusive, ser moralmente relevantes. Sendo objetiva, pode conviver com outras circunstâncias de cunho puramente subjetivo.[2]

Doutro lado, como bem já apontado, os que crêem ser qualificadora subjetiva, chegam a esta conclusão com base no texto legal do inciso VI, §2º, que, sob a rubrica de “feminicídio”, diz ser qualificado o homicídio praticado por “razões do sexo feminino”. Ou seja, uma vez que a letra da lei se remete às razões, é porque da motivação é que se trata. Sendo assim, é de natureza subjetiva, ainda que o inciso I do §2º trate de uma situação objetiva. Nesse sentido é a lição de SANCHES CUNHA[3]:  “Ressaltamos, por fim, que a qualificadora do feminicídio é subjetiva, pressupondo motivação especial: o homicídio deve ser cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Mesmo no caso do inciso I do §2º-A, o fato de a conceituação de violência doméstica e familiar ser um dado objetivo, extraído da lei, não afasta a subjetividade. Isso porque o §2º-A é apenas explicativo; a qualificadora está verdadeiramente no inciso VI que, ao estabelecer que o homicídio se qualifica quando cometido por razões da condição do sexo feminino, deixa evidente que isso ocorre pela motivação, não pelos meios de execução.” (grifou-se)

Para ESTEFAM, trata-se de qualificadora de natureza mista. Explica: “Em nosso modo de ver, a qualificadora tem natureza mista (objetiva e subjetiva). Explica-se: o aspecto objetivo da circunstância reside no sexo do sujeito passivo, pois a lei é categórica ao exigir que seja a vítima do feminicídio uma mulher. O elemento subjetivo radica-se em que a conduta deve ser praticada por razões da condição de sexo feminino.[4]

Posto isso, nos parece que a razão está com SANCHES CUNHA. O conceito de feminicídio é o homicídio contra a mulher por razões do sexo feminino e tratar como objetiva a natureza desta qualificadora implicaria afirmar que, na prática, todo homicídio, praticado por um homem contra uma mulher, seria feminicídio, o que é absurdo, além de inconstitucional, pois o homem é sempre mais forte que a mulher, o que daria azo à interpretação de que houvera desprezo pela fragilidade feminina.

Além do mais violaria o princípio da igualdade estabelecido no caput do art. 5º da Constituição ao punir de forma mais grave, a perda da vida humana feminina que a da masculina, sem observar critérios de desvalor da ação e de resultado em um e em outro.

Uma consequência prática desta compreensão é que, sendo subjetiva, a qualificadora do feminicídio não poderá coexistir com a previlegiadora, estabelecida no §1º, art. 121 do CP. Noutros termos, não existe feminicídio qualificado e privilegiado, a não ser que a qualificadora seja de natureza objetiva, previstas no corpo do §2º.

Esta conclusão é solar, pois todas as figuras privilegiadoras do §1º são de natureza subjetiva, não podendo o agente ter uma conduta motivada por uma privilegiadora e qualificadora concomitantemente (HC/STF 97.034/MG).

Uma outra consequência prática é que se o feminicídio é de natureza subjetiva, não poderá coexistir com as qualificadoras subjetivas de motivo torpe e motivo fútil, pois desprezar a condição da mulher ou discriminá-la já se enquadra como motivação repugnante, abjeta, vil. A hipótese é de flagrante bis in idem.

Entretanto, o STJ tem entendimento diverso, afirmando que a qualificadora do feminicídio pode coexistir com a de motivo torpe, por exemplo, uma vez que tem natureza objetiva (STJ, REsp 1739704/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, 5ª Turma, julgamento em 18.09.2018, DJe 26.09.2018).

Outros tribunais estaduais, porém, entendem ser de natureza subjetiva. Veja-se:

APELAÇÃO CRIMINAL – HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO – CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI – REJEIÇÃO DA PRELIMINAR DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO – DENÚNCIA QUE, EMBORA NÃO TENHA OBSERVADO A MELHOR TÉCNICA DE REDAÇÃO, PERMITE A COMPREENSÃO DOS LIMITES DA IMPUTAÇÃO – PREJUÍZO À DEFESA DO ACUSADO INDEMONSTRADO – ACOLHIMENTO DA PRELIMINAR DE NULIDADE DO JULGAMENTO CONSUBSTANCIADA NA CONFIGURAÇÃO DE BIS IN IDEM PELO RECONHECIMENTO SIMULTÂNEO ENTRE AS QUALIFICADORAS DO MOTIVO FÚTIL E DO FEMINICÍDIO – QUALIFICADORAS DE NATUREZA SUBJETIVA – NULIDADE DO JULGAMENTO PERANTE O TRIBUNAL DO JÚRI RECONHECIDA – MÉRITO RECURSAL PREJUDICADO – Não se reputa nula a sentença, por ofensa ao princípio da correlação, se a condenação do agente pela prática do crime de homicídio tentado encontra esteio nos fatos narrados na denúncia, ainda que não se tenha observado a melhor técnica descritiva – A cumulação da qualificadora referente à futilidade do motivo do crime àquela do feminicídio configura bis in idem, uma vez que ambas são dotadas de índole subjetiva e dizem respeito às razões que levaram o agente ao cometimento da infração penal. Precedentes deste Tribunal. (TJMG – ACr 1.0105.16.037434-1/001 – 2ª C.Crim. – Rel. Catta Preta – DJe 19.12.2017) (grifou-se)

Por fim, quando a qualificadora do feminicídio incidir, restará prejudicada a incidência da agravante genérica do art. 61, II, f, parte final, do CP, sob pena de bis in idem vedado pelo art. 61, caput, do CP.


[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17 ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 455, livro digital. Assim também MASSON: Feminicídio é o homicídio doloso cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. MASSON, Cleber. Manuel de Direito Penal – v. 2. 11 ed. São Paulo: Método: 2018, p. 73, livro digital.

[2] Idem, ibidem.

[3] SANCHES CUNHA, Rogério. Manual de Direito Penal. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 63.

[4] ESTEFAM, André. Direito Penal – Parte Especial v. 2.  5 ed. São Paulo: 2018, p. 134, livro digital.

Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, vice-presidente da ABRACRIM/MA, especialista em ciências penais e ex-policial civil.


Um comentário

  1. Gostei do assunto de sua publicação, gostaria de ver se é pertinente de divulgar em meu site:

    http://www.planosdesaudehdm.com.br

    Sds.
    Hermes Dagoberto

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *