PROVIMENTO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO INTERROMPE PRESCRIÇÃO: DECISÃO QUE ACOLHE EMBARGOS NÃO É NOVA SENTENÇA E NÃO PODE POR ISSO MESMO ALTERAR A SEMÂNTICA DO ARTIGO 117, IV, DO CÓDIGO PENAL.



PROVIMENTO DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NÃO INTERROMPE PRESCRIÇÃO: DECISÃO QUE ACOLHE EMBARGOS NÃO É NOVA SENTENÇA E NÃO PODE POR ISSO MESMO ALTERAR A SEMÂNTICA DO ARTIGO 117, IV, DO CÓDIGO PENAL.

Filipe Maia Broeto[1]

Jimmy Deyglisson Silva de Sousa[2]

A prescrição é tema que, ao menos avisado, pode parecer simples. Na prática, porém, quando do juízo de subsunção do fato à norma a fim de se identificar, na “timeline” do processo, o termo inicial da contagem ou interrupção de prazo, encontram-se severas dificuldades. A propósito, uma delas relaciona-se com inc. IV do art. 117 do Código Penal, cuja redação dispõe que “[o] curso da prescrição interrompe-se […] pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis”.

De leitura sem especial complexidade, os desdobramentos hermenêuticos que podem decorrer do sobredito enunciado são capazes de gerar demasiada controvérsia, dentre as quais se destaca aquela que será analisada no presente texto.  Afinal, poder-se-ia dizer que eventuais embargos de declaração[3] — acaso dotados de efeitos modificativos, ou infringentes — teriam o condão de alterar o alcance semântico da expressão “publicação da sentença condenatória”, de modo a ensejar a substituição da data da publicação do decisum como marco interruptivo do fluxo prescricional?

Como se sabe, os embargos de declaração destinados à sentença, no processo penal, estão previstos no art. 382 do CPP.[4] Conquanto haja discussões na doutrina acerca de sua natureza jurídica, se recurso ou não (uma vez que não é submetido à instância superior para avaliação da decisão atacada)[5], a opinião quase pacífica é no sentido de que se trata, sim, de meio de impugnação de natureza recursal[6], cuja finalidade é “pedir que o juiz declare a sentença, sempre que nela houver obscuridade, ambiguidade, contradição ou omissão”.

Ocorre que este recurso pode, por sua capacidade de objeção ínsita à natureza impugnatória, fazer com que o julgador ultrapasse a superfície da expectativa de meros efeitos aclaratórios e venha a não só declarar o julgado, mas essencialmente modificá-lo, (como se de apelação se tratasse), advindo desta modificação diversos efeitos consideráveis ao status libertatis do réu.[7] Imagine-se a hipótese de uma sentença condenatória que não analisa a prescrição deduzida em alegações finais, a qual, porém, passa a ser reconhecida, com a consequente extinção da punibilidade do réu, após o provimento dos embargos opostos, ou a que não avalia eventual causa de diminuição de pena ou atenuante, reconhecida após o julgamento deste meio de impugnação.

A sentença penal a ser executada como título executivo estatal, portanto, não é aquela anterior aos embargos que a modificaram, mas esta, decorrente dos efeitos infringentes. O imbróglio, aliás, nasce aí, porquanto o inc. IV do art. 117 do CP diz que é a publicação da sentença condenatória recorrível que interrompe o prazo prescricional, e não a publicação do julgamento dos embargos — mesmo que estes, uma vez providos, alterem substancialmente o teor do decisum primeiro.

Para que se afaste a neblina da incompreensão, deve-se considerar, primeiramente, o princípio da legalidade penal, que norteia toda a hermenêutica no plano penal.[8] Desdobra-se no princípio da determinação ou da taxatividade (nullum crimen sine lege scripta et stricta), segundo o qual a lei penal “deve ser suficientemente clara e precisa na formulação do conteúdo do tipo de injusto e no estabelecimento da sanção para que exista segurança jurídica[9].

Assim, quando a lei diz expressamente “publicação da sentença condenatória recorrível”, foi exatamente isso que ela quis diz dizer. Explica-se: em recente polêmica envolvendo o mesmo inciso, porém com relação à expressão “acórdão condenatório”, os autores se manifestaram[10][11] no sentido de que não poderia significar acórdão que confirma condenação de primeiro grau, mas somente aquele que “reformava” a sentença absolutória de base.

Para além do argumento quanto à literalidade da lei, havia outro motivo pelo qual considerar correta esta posição. É que o projeto de lei que tramitou pelo Congresso Nacional e que foi encaminhado pela Mensagem nº 785/95 do Poder Executivo, o qual resultou na nova redação do inciso, operada pela lei 11.596/17, continha como texto do inciso V o seguinte: “pela decisão do tribunal que confirma ou impõe a condenação”.

Ora, como se vê da atual redação, referida expressão foi vetada, não havendo de se falar em acórdão condenatório como aquele que apenas confirmou sentença condenatória, notadamente porque uma interpretação histórica bem explica que o próprio legislador teve a oportunidade de inseri-la e não o fez.[12]

A coerência, portanto, é uma virtude que deve carregar o jurista, sob pena de suas opiniões serem tachadas de mera inclinação de vontade pessoal e não o resultado de uma pesquisa séria, dotada de metodologia lógica e imparcial.

Assim, na hipótese de oposição de embargos de declaração, havendo provimento, a data da publicação do julgamento desta decisão jamais poder(i)á confundir-se com data de publicação da sentença. Haveria aqui uma evidente agressão à legalidade.

Nem se diga que eventuais efeitos modificativos dos embargos poderiam fazer com que se considerasse a data da publicação do julgamento dos aclaratórios como a data da publicação da sentença condenatória, sob o argumento de que não constituía a sentença modificada título executivo apto à execução.

Em primeiro lugar, em caso de provimento dos embargos, ainda que sem “efeitos infringentes”, a sentença anteriormente embargada não poderá ser utilizada para execução. Da mesma forma, porém, e isto é mais que óbvio, ocorre com a sentença atacada com embargos de finalidade modificativa.[13]

Com este argumento, obrigar-se-ia a considerar, portanto, que quaisquer embargos de declaração, com efeito modificativo ou não, desde que providos, estariam aptos a mudar a data da publicação da sentença condenatória, alterando assim o marco interruptivo prescricional.

Este entendimento soaria ilógico, pois bastaria à parte, diante da prescrição que ainda se distancia, opor embargos de declaração para ver chegar o termo onde a prescrição restaria reconhecida. Tal expediente violaria, por óbvio, a boa-fé objetiva[14] e por isso mesmo o marco interruptivo foi definido de maneira clara: data de publicação da sentença condenatória. Não há meio termo aqui.

Em segundo lugar, também com consequências desastrosas na praxis forense, se a data do julgamento dos embargos providos substituísse a data de publicação da sentença condenatória, os efeitos teriam de ser aplicados na prescrição que corre entre esta e o acórdão (prescrição superveniente). É dizer, poderia, por um lado, diminuir a data da prescrição retroativa, mas aumentaria, por outro, o prazo da prescrição entre a decisão de primeiro grau e o seu trânsito em julgado. Não adianta diminuir-se o marco temporal de um lado e esperar que o efeito benéfico seja transferido para a fase seguinte do prazo prescricional. A coerência dogmática, aqui, há de funcionar como vetor interpretativo.

Como se pode notar, para além de dogmaticamente equivocado o posicionamento, pois que atentatório à dogmática penal e processual penal, por meio dele se instauraria verdadeira insegurança jurídica, visto que os marcos prescricionais, objetivamente previstos em lei, ficariam à mercê da vontade das partes, as quais poderiam empregar os embargos de declaração como mecanismo não de “integração da decisão”, mas, sim, de criação (pelo réu) ou impedimento (pelo Parquet) de prescrição.  

A coerência é virtude que se espera de muitos, para não dizer de todos, conquanto se veja em poucos. O Direito, enquanto ciência, deve guardá-la, até mesmo para não se transformar em algo “amorfo”, que “diz o que querem que diga”, a depender de quem quer que aquilo seja dito, como os exemplos tangíveis dos “sete mandamentos”, surrados, da “Granja dos Bichos”, na famosa sátira de George Orwell.[15]


[1] Advogado Criminalista e professor de Direito Penal e Processo Penal, em nível de graduação e pós-graduação. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires – FDUBA/ARG. Especialista em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG, em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes – UCAM, em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – FDUC/PT-IBCCRIM e em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM; do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico – IBDPE; do Instituto de Ciências Penais – ICP; da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso – OAB/MT; e Membro efetivo do Instituto dos Advogados Mato-grossenses – IAMAT, Diretor da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim. Autor de livros e artigos jurídicos, no Brasil e no exterior. E-mail: filipemaia.adv@gmail.com.

[2] Especialista em ciências penais pela Universidade Anhanguera-UNIDERP, pós-graduando em direito penal e processo penal pela ABDCONST – Associação Brasileira de Direito Constitucional, vice-presidente da ABRACRIM/MA, membro associado do IDP – Instituto de Ciências Penais, autor de artigos jurídicos e advogado criminalista.

[3] Segundo recentemente decidido pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo do Habeas Corpus de n.º 171493/PA, Julgamento de embargos de declaração pode ser marco interruptivo da prescrição. SILVA, Álvaro. Julgamento de embargos de declaração pode ser marco interruptivo da prescrição. Revista Consultor Jurídico – CONJUR. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-dez-20/opiniao-embargos-declaracao-interrupcao-prescricao#:~:text=N%C3%A3o%20%C3%A9%20%C3%A0%20toa%20que,a%20senten%C3%A7a%2C%20de%20modo%20a> Acesso em 03 fev. 2021.

[4] Art. 382.  Qualquer das partes poderá, no prazo de 2 (dois) dias, pedir ao juiz que declare a sentença, sempre que nela houver obscuridade, ambigüidade, contradição ou omissão.

[5] No sentido de que os embargos são meros incidentes de julgamentos, e não recurso: BERMURDES, Sérgio. Comentários ao Código de Processo Civil – v. VII. São Paulo: RT, 1977, p. 120-121, apud, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Processo Civil. 14 ed. Rio de Janeiro:  Lumen Juris, 2007, p. 122.

[6] No sentido de tratar-se de recurso, entre outros: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil – v. VII. 6 ed. São Paulo: RT, 1993, p. 497, apud, CÂMARA, 2007, p. 123; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil – v. 2. São Paulo: RT, 2015, p. 539.

[7] STJ – AgRg-EDcl-REsp 1.304.376 – (2012/0028688-4) – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi.

[8] A propósito, como já se pôde assentar: “O direito penal tem na linguagem estrita o limite do exercício constitucional, portanto legítimo, da competência sancionatória do Estado. Os tipos penais devem conter com exatidão a descrição da conduta indesejada e a respectiva sanção penal pelo ingresso da pessoa humana nos termos da conduta tipificada. O regime jurídico-constitucional determina que a lei penal deva ser certa, inadmitindo dúvidas semânticas, porque o questionamento pode representar a tipificação equivocada de uma conduta humana, desencadeando uma invasão na esfera privada, comportamental, da pessoa humana.” FARIA, Fernando Cesar de Oliveira; Nunes, Filipe Maia Broeto. Incoerência da interrupção da prescrição penal. Revista Bonijuris, vol. 32, n. 2, 663, abril/maio, págs. 126-139.

[9] REGIS PRADO, Luiz. Tratado de Direito Penal – v. 1. 1 Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 168, 2014.

[10] FARIA, Fernando Cesar de Oliveira; Nunes, Filipe Maia Broeto. Incoerência da interrupção da prescrição penal. Revista Bonijuris, vol. 32, n. 2, 663, abril/maio, págs. 126-139.

[11] FAYET JUNIOR, Ney (org.). Prescrição Penal. 1 ed. Porto Alegre: Entre aspas, 2020.

[12]Malgrado o enunciado legal e sua interpretação histórica e teleológica não deixarem dúvidas quanto à temática, a Primeira Turma do STF, em dissonância com o que vem decidindo a Segunda (posição aqui adotada), tem entendido que o acórdão, conquanto confirmatório, interrompe a prescrição. O posicionamento da Primeira Turma é dogmaticamente equivocado, haja vista que admite, ainda que de forma oblíqua, a possibilidade de haver duas condenações penais ou, dito de outro modo, que possível seja, num mesmo processo penal, existir a procedência dúplice/duplicada de uma mesma e única pretensão acusatória. FARIA, Fernando Cesar de Oliveira; Nunes, Filipe Maia Broeto. Incoerência da interrupção da prescrição penal. Revista Bonijuris, vol. 32, n. 2, 663, abril/maio, págs. 126-139.

[13] CÂMARA, 2007, p. 124. Note-se que a possibilidade de efeitos infringentes, de regra, só ocorre na hipótese de omissão, e não quando se guerreia a contradição ou obscuridade. Mas esta lição possui considerações excepcionais quando se trata de processo penal. É que nesta área, atacando-se uma contradição, por exemplo, a provisão dos embargos pode ter efeitos infringentes, de maneira que se repercuta no estado de liberdade do réu. Pense-se na hipótese de contradição entre a data do fato narrada na denúncia e aquela narrada na sentença, a qual pode repercutir no relevante fato da idade da vítima à época do crime.

[14] HC 143.414/STJ, de relatoria da min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, em que se proibiu o comportamento contraditório: “Tendo em vista o primado em foco, por meio do qual à ordem jurídica repugna a ideia de comportamentos contraditórios, tendo em vista a anuência fornecida pela defesa técnica, seria inadequado, num plano mesmo de eticidade processual, a declaração da nulidade”.

[15] Faz-se breve referência, aqui, aos câmbios hermenêuticos levados a efeito pelos “porcos”, após a vitoriosa revolução contra os humanos, no caso, o Sr. Jones, então proprietário da “Granja Solar”.  Cita-se, por exemplo, o Quarto Mandamento, que dizia “nenhum animal dormirá em cama”. Quando os porcos assumiram a liderança do movimento e passaram a morar na casa grande, a qual tampouco deveria ser habitada, não tardou para que fossem vistos dormindo em camas. Na história, Quitéria recordava-se de uma proibição nesse sentido, razão por que procura Maricota, que era melhor versada em leitura, a fim de que esta, lendo o enunciado do predito Mandamento, lhe proporcionasse a exata dimensão da abrangência da “norma proibitiva”. Segundo o autor, “[c]om alguma dificuldade, Maricota soletrou o mandamento: ‘Diz que nenhum animal dormirá em cama com lençóis’. Curioso, Quitéria não se recordava dessa menção a lençóis no Quarto Mandamento. Mas se estava escrito na parede, devia haver”. ORWELL, George. A revolução dos bichos: um conto de fadas. Trad. Heitor Aquino Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 58.


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