O que é a tipicidade conglobante? Traços iniciais



O que é a tipicidade conglobante? Traços iniciais

            Partindo do conceito de delito como fato típico, antijurídico e culpável, a relação entre os dois primeiros requisitos sempre foi tema de debate na doutrina. Inicialmente, cunhou-se a tipicidade como algo sem qualquer relação com a antijuridicidade, sem nada lhe apontar. Em seguida, entendeu-se que a tipicidade seria um indício da antijuridicidade, um indicativo de sua existência. É a chamada teoria da ratio cognoscendi, sustentada por MAX ERNST MAYER[1], e defendida pela maior parte da doutrina nacional e estrangeira.

            Os demais posicionamentos compreendem que a tipicidade é a ratio essendi (razão de ser) da antijuridicidade, variando, de um lado, os que afirmam que, constatada a primeira, automaticamente estará afirmada a segunda, podendo ser afastada por causas de justificação que eliminarão a tipicidade (comportando-se então como elementos negativos do tipo); de outro, os que defendem que, apesar de a tipicidade implicar a antijuridicidade, esta poderá ser excluída por causas de justificação, numa análise posterior[2].

            Zaffaroni, ao explicar sua teoria conglobante, registra que no momento da elaboração da normal penal o legislador primeiro encontra-se diante de um ente, valora-o e, surgido o interesse em tutelá-lo penalmente, assim o faz, por meio da lei. Como acontece com o homicídio, o Estado concebe a vida humana como digna de proteção penal e, após valorá-la, entende que deve ser protegida a norma que diz “não matarás”, norma essa que será expressa na lei (tipo penal), e que descreverá a conduta proibitiva: matar alguém (art. 121 do CP).

            Dessa forma, o legislador passa pelo ente, vai até a norma e chega ao tipo. O intérprete da lei, todavia, percorre estrada inversa, pois conhece primeiro o tipo (matar alguém), ao que julga estar-se ali protegendo a norma (não matarás), a qual tutela o bem jurídico penal, que é a vida humana. Por isso que se diz: “o tipo pertence à lei, mas nem a norma nem o bem jurídico pertencem à lei, mas são conhecidos através do tipo legal e limitam o seu alcance.[3]

            A partir deste raciocínio, pode-se concluir que existe a antijuricidade e a antinormatividade. Esta pode ser conceituada “a contradição do fato realizado para com a norma proibitiva do tipo penal pertinente. A realização da conduta típica acarreta sua antinormatividade. Mas, para que haja antijuridicidade, é preciso cotejar o fato com o conjunto das normas proibitivas e permissivas (ordenamento como um todo). Assim, embora havendo a antinormatividade, pode ser que o fato esteja acobertado por uma norma permissiva (exemplo: estado de necessidade), nesse caso, não haverá antijuridicidade.[4]

            E é aqui que nasce também o que se chama de tipicidade penal, a qual requer que a conduta se enquadre no tipo legal e afete o bem jurídico, para que reste configurada.

            Para exemplificar, Zaffaroni dá o exemplo do oficial de justiça que, cumprindo ordem de sequestro numa execução cível, dentro de todas as formalidades legais, sequestra uma obra de arte que estava dentro da residência do executado, e a coloca à disposição do juízo. Para boa parte da doutrina, esta conduta seria típica, mas estaria justificada em razão de ter agido o oficial amparado por uma excludente de ilicitude (estrito cumprimento do dever legal – art. 23, III do CP).

            Todavia, para o jurista argentino, não é assim que as coisas se dão.

            Isto porque “tipicidade implica antinormatividade (contrariedade à norma) e não podemos admitir que na ordem normativa uma norma ordene o que outra proíbe. Uma ordem normativa, na qual uma norma possa ordenar o que a outra pode proibir, deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária.[5]

            É que as normas não vivem de maneira isolada no ordenamento, de sorte que possam proibir o que outras permitem. Elas mutuamente se entrelaçam com o fim supremo de evitar a “guerra de todos contra todos”. Assim, tomando o exemplo dado, não poderia ser interpretada como típica a ação de entrar forçosamente naquela residência (violação à domicílio – art. 150 do CP), sem a aquiescência do proprietário, com o propósito de sequestrar a obra (furto – art. 155 do CP), posto que a própria ordem normativa a ordena e a incentiva (nos dispositivos da lei processual civil que regem os meios executórios).[6]

            Por fim, conclui que “o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas (…)”.

            Eis, portanto, o conceito de tipicidade conglobante.



[1] ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Direito penal brasileiro – parte geral. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 408.

[2] Idem, ibidem.

[3] Idem, p. 410.

[4] GUEIROS, Artur; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo. Direito Penal – volume único. São Paulo: Atlas, 2018, p. 255, livro digital.      

[5] ZAFFARONI, PIERANGELI, 2015, p. 412.

[6] Idem, p. 413.

Por: JIimmy Deyglisson é advogado criminalista, vice-presidente da ABRACRIM/MA, especialista em ciências penais e ex-policial civil.


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