Matei sem motivo. Isso é fútil?



Matei sem motivo. Isso é fútil?

As qualificadoras são previsões legais que que censuram mais acentuadamente a conduta do agente, fazendo com que a pena seja maior. É o que acontece com o motivo fútil e torpe, insculpidos nos incs. I e II, §2º, art. 121 do CP, que qualificam o homicídio e preveem uma pena de reclusão de doze a trinta anos.

           Diferentemente, claro, o caput do art. 121 prevê o chamado homicídio simples, com uma pena de seis a vinte anos.

            Portanto, normativamente, o homicídio praticado sem motivo torpe ou fútil, será capitulado no caput do art. 121, sendo por isso mesmo denominado homicídio simples, repita-se.

           Mas é possível que se mate alguém sem um motivo? Bem, na prática, não se concebe hipótese em que ocorra homicídio sem motivo, pois sempre haverá um “porquê”, justo ou injusto, da atitude do agente. Se for justo, enquadrar-se-á em algumas das excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito). Se for injusta, deverá ser capitulado como torpe ou fútil.

            Entretanto, poderia se pensar que na ausência de motivo para conduta tão reprovável, maior censurabilidade haveria, o que não poderia ser entendido como homicídio simples. Nesse sentido PAGANELLA BOSCHI, citado por NUCCI (Código Penal Comentando, 17 ed, São Paulo: Forense, 2017, p. 303, livro digital), e antiga jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Homicídio qualificado – Motivo fútil – Caracterização – Ausência de motivo para a ação do agente – Recurso provido” (RSE 164.092-3, Taquaritinga, rel. Lustosa Goulart, 18.08.1994)”.

           A questão não é tão simples, todavia. É que a qualificadora é espécie de imputação penal de norma incriminadora e deverá sempre obedecer ao princípio da legalidade. “Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente”, ensina BITENCOURT[1].

            É comum que em alguns homicídios a acusação não se desincumba do ônus de prova quanto à futilidade, pois não restou claro, com os elementos carreados, que o motivo pelo qual se praticou o fato foi insignificante, desproporcional, ou seja, fútil. É comum até que, após recurso em sentido estrito, o tribunal entenda que, mesmo denunciado por motivo fútil, não tenha sido provada sua existência, reformando então a decisão de pronúncia e enviando o réu ao julgamento pelo tribunal do júri, mas por homicídio simples, decotada a qualificadora.

           Mas esta hipótese de imputação de motivo fútil ante a ausência de motivo ocorre quando a acusação não conseguiu provar as razões da conduta criminosa. Por não querer denunciar apenas por homicídio simples, faz um arranjo hermenêutico e “joga” com o motivo fútil.

Entrementes, não se pode trabalhar desta forma, sob pena de infringência brutal ao princípio da legalidade, bem como afronta à regra do ônus da prova, na medida em que a alegação do Ministério Público deve ser por ele provada.

           Ademais, supor que há homicídio sem motivo é imaginar que somente um deficiente mental o praticou, o que deve alertar os atores judiciais para que se requeira a abertura do incidente de insanidade mental.

            Nesta mesma linha é o escólio de NUCCI[2]: “O crime sempre tem uma motivação, de modo que desconhecer a razão que levou o agente a cometê-lo jamais deveria ser considerado motivo fútil. É possível que o Estado-acusação não descubra qual foi o fator determinante da ação criminosa, o que não significa ausência de motivo”.

           Também BITENCOURT[3]: “A insuficiência de motivo não pode, porém, ser confundida com ausência de motivos. Aliás, motivo fútil não se confunde com ausência de motivo. Essa é uma grande aberração jurídico-penal. A presença de um motivo, fútil ou banal, qualifica o homicídio. No entanto, a completa ausência de motivo, que deve tornar mais censurável a conduta, pela gratuidade e maior reprovabilidade, não o qualifica”.

Mas o autor gaúcho aponta um paradoxo nesta compreensão, acastelando o acréscimo de nova qualificadora para suprir a incongruência: “Absurdo lógico: homicídio motivado é qualificado; homicídio sem motivo é simples. Mas o princípio da reserva legal não deixa alternativa. Por isso, defendemos, de lege ferenda, o acréscimo de uma nova qualificadora ao homicídio: “ausência de motivo”, pois quem o pratica nessas circunstâncias revela uma perigosa anormalidade moral que atinge as raias da demência.[4]

           A atual jurisprudência nacional, tanto dos tribunais estaduais, quanto do Superior Tribunal de Justiça, entende que a ausência de motivo não pode ser considerada/interpretada como motivo fútil:

 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – SENTENÇA DE PRONÚNCIA – DECOTE DE QUALIFICADORA – MOTIVO FÚTIL – IMPOSSIBILIDADE – PRONÚNCIA MANTIDA – ‘Como é sabido, fútil é o motivo insignificante, apresentando desproporção entre o crime e sua causa moral. Não se pode confundir, como se pretende, ausência de motivo com futilidade. Assim, se o sujeito pratica o fato sem razão alguma, não incide essa qualificadora, à luz do princípio da reserva legal’ (STJ- REsp 769651/SP; Rel. Min. Laurita Vaz; DJ 15/05/06). (TJMG – RSE 1.0024.04.339371-9/001 – 2ª C.Crim. – Rel. Renato Martins Jacob – DJe 24.11.2010) (grifou-se)

Doutra sorte, se provado que o agente cometeu o homicídio por mero sadismo, uma vontade indômita de matar, a depender do caso, se não restar provada sua incapacidade mental, poderá ter sua conduta capitulada como motivo torpe.


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 1. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, 67-68, livro digital.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentando, 17 ed, São Paulo: Forense, 2017, p. 302, livro digital.

[3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 2. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 181, livro digital.

[4] Idem, ibidem.

Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, vice-presidente da ABRACRIM/MA, especialista em ciências criminais e ex-policial civil.


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