Liminar contra carreata. Confronto à decisão do juiz Douglas de Melo Martins



Liminar contra carreata. Confronto à decisão do juiz Douglas de Melo Martins

A pandemia do covid-19 (coronavírus) tem resultado numa série de medidas inéditas por parte do poder público. A exemplo, o juiz Douglas de Melo Martins, titular da vara de interesses difusos e coletivos da comarca de São Luís-MA, em cautelar inominada movida pelo Ministério Público, Defensoria Pública e OAB/MA, concedeu liminar contra todos os idealizadores da denominada “CARREATA GERAL DE SÃO LUÍS”, noticiada pelas mídias sociais para ocorrer na segunda-feira, dia 30/03/2020, às 10:00 horas, com saída na Praça do Pescador na Avenida Litorânea. Também figuraram no pólo passivo todos que se fariam presentes no movimento, com o objetivo de que manifestar o pensamento segundo o qual o Brasil deveria voltar a funcionar já. O pedido foi cumulado com obrigação de fazer, em face do Estado do Maranhão e do Município de São Luís[1].

Em suma, a decisão proibiu a realização da referida carreata, pois se entendeu que haveria ali a formação de aglomeração que lesava o interesse coletivo quanto a prevenção da saúde pública. Igualmente, proibiu eventos que resultem também em outras formações de aglomerações em espaços públicos no território do Estado do Maranhão, enquanto durarem as medidas de isolamento adotadas pelas autoridades sanitárias estaduais.

Determinou, para efeito de cumprimento da liminar, que o Estado do Maranhão e ao Município de São Luís adotassem medidas necessárias visando a não realização do movimento, com a identificação dos responsáveis pela sua organização, acionamento dos órgãos de segurança, apreensão de veículos e materiais eventualmente utilizados no evento, elaboração de relatório sobre os danos causados, entre outras ações que coíbam o risco de proliferação do COVID-19.

Os argumentos de mérito utilizados pelo juízo foram a aplicação do art. 196 da CF, que versa sobre a saúde pública como dever de proteção do Estado, e do art. 6º do mesmo texto, que elege a saúde como direito individual a ser proporcionado pelo ente público.

Também utilizou como fundamento a Lei nº 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, precisamente em seu art. 3º, onde, para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia, determina que as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as medidas de isolamento e quarentena.

No que pertine à legislação estadual, motivou-se pelo disposto no Decreto Estadual nº 35.672/20, por meio do qual se declarou calamidade pública no Estado, e pelo Decreto Estadual nº 35.677/20, que estabeleceu medidas de prevenção do contágio e de combate à propagação da transmissão da covid-19. Este último originou, entre outras proibições, a suspensão de atividades que possibilitem a grande aglomeração de pessoas em equipamentos públicos ou de uso coletivo.

              Considerando tudo isto, refere-se o juízo à limitação do direito constitucional à reunião e explica que, como qualquer outro, não é absoluto, podendo ser restringido em determinadas circunstâncias. Qualquer direito fundamental deve ser interpretado de forma harmônica em relação aos demais, impedindo-se o seu exercício quando venha a violar interesse público, diz. Estas as considerações do juiz Douglas de Melo Martins.

              O direito à reunião é previsto no art. 5º, inc. XVI, da Constituição: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

              Alexandre de Moraes, citando Paolo Barile, qualifica o direito de reunião como, “simultaneamente, um direito individual e uma garantia coletiva, uma vez que consiste tanto na possibilidade de determinados agrupamentos de pessoas reunirem-se para livre manifestação de seus pensamentos, concretizando a titularidade desse direito inclusive para as minorias, quanto na livre opção do indivíduo de participar ou não dessa reunião” (grifou-se)[2].

              É de tal abrangência referida garantia que o Supremo Tribunal Federal, sob a lavra do ministro Ricardo Lewandowski, já entendeu inconstitucional o Decreto nº 20.098/99, do Distrito Federal, que proibia a realização de manifestação pública com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros na Praça dos Três Poderes, na Esplanada dos Ministérios, na Praça do Buriti e vias adjacentes[3].

              Segundo Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, o direito à reunião possui elementos que o caracteriza e, por conseguinte, diferencia-o de outros institutos que possam a ele se assemelhar. Desta feita, pressupõe ele um agrupamento de pessoas (elemento subjetivo), ostentando um mínimo de coordenação (elemento formal), com convocação prévia e participação consciente dos integrantes. Devem também reunirem-se com uma finalidade específica definida (elemento teleológico), onde poderão expor suas convicções, ouvir convicções alheias, ou apenas marcarem posição sobre um assunto por meio da mera presença. Por fim, o agrupamento de pessoas deverá ser transitório (elemento temporal), pois casa haja laços duradouros, passará de simples exercício de direito de reunião à uma verdadeira associação.[4]

              Considerando, assim, o que ensina a doutrina e o próprio texto constitucional, o direito de reunião só poderia ser vedado se houvesse fins não pacíficos, com integrantes armados, frustrando outra reunião marcada anteriormente para o mesmo local e ausente prévia comunicação à autoridade competente.

              Mais ainda, em outra oportunidade, o STF, em decisão unânime (8 votos), na ADPF 187, liberou a realização dos eventos chamados “marcha da maconha”, que reuniram manifestantes favoráveis à descriminalização da droga. Para os ministros, os direitos constitucionais de reunião e de livre expressão do pensamento garantem a realização dessas marchas. Muitos ressaltaram que a liberdade de expressão e de manifestação somente pode ser proibida quando for dirigida a incitar ou provocar ações ilegais e iminentes.

              Para Celso de Mello, relator da ação, não se discutia ali a proibição ou não do uso de entorpecentes, mas tão somente o exercício do livre direito de reunião e de manifestação do pensamento.

              Em determinado trecho, Mello diz especificamente quais as restrições de ordem jurídica que pode sofrer referido direito:

 

“É de ressaltar que, em nosso sistema normativo, o direito de reunião pode sofrer, excepcionalmente, restrições de ordem jurídica em períodos de crise institucional, desde que utilizados, em caráter extraordinário, os mecanismos constitucionais de defesa do Estado, como o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I, “a”) e o estado de sítio (CF, art. 139, IV), que legitimam a utilização, pelo Presidente da República, dos denominados poderes de crise, dentre os quais se situa a faculdade de suspender a própria liberdade de reunião, ainda que exercida em espaços privados” (grifou-se).

 

              Desta forma, além das limitações do próprio texto enunciativo do direito de reunião no art. 5º, considerou o STF, numa interpretação sistêmica sob a lavra do ministro Celso, que qualquer obstáculo jurídico (ou seja, emanado do Judiciário) da referida garantia, só poderá ser efetivado se decretados o estado de defesa ou estado de sítio. No caso em exame, não há decretação de nenhum destes estados, por parte do Presidente da República, que autorize a limitação do direito de reunião.

No entanto, ainda ressaltaria a excepcionalidade da conjuntura atual produzida pelo coronavírus, a qual, em tese, autorizaria tal decisão.

              Aqui estamos diante de um aparente impasse, portanto. Nem a Constituição, nem a jurisprudência firmada no âmbito do STF permitem a restrição judicial do direito de reunião, senão nestas hipóteses acima elencadas. A pandemia do coronavírus autorizaria? Entendemos que não, desde que respeitados os decretos sobre aglomeração, pois em caso contrário, poderia estar-se praticando o crime do art. 268 do Código Penal[5], que trata da infração de medida sanitária preventiva. Na medida em que há decreto federal e estadual que proíbem as aglomerações, seu descumprimento implicaria na prático deste delito.

              O nó górdio, então, residiria na seguinte pergunta: a carreata de São Luís estaria violando algum decreto, seja estadual ou federal, quanto à aglomeração que permita a transmissão de coronavírus? Evidentemente que não. Com o máximo respeito à decisão emanada, uma carreata não violaria a proibição de aglomeração, por se tratar, justamente, de uma carreata!

              Neste tipo de evento, não existe, de regra, a aproximação de pessoas, porquanto estarão todas dentro dos respectivos veículos, dinâmica que impede que haja contato pessoal. É manifesto que se os veículos levarem mais de uma pessoa, certamente estarão ali as de uma mesma família, já submetidas anteriormente e naturalmente ao contato, o que não é ilegal.

              Proibir o direito de reunião conjeturando que uma carreata seja, objetivamente, uma aglomeração de pessoas a permitir o contato pessoal, ou que possa desbordar para um contato pessoal, caso saiam de seus veículos, é incursionar-se, ilegitimamente, como legislador primário das garantias, o que é vedado. Em termos de direito penal, poderia se chamar de interpretação in malam partem, vedada pela dogmática penal moderna.

O exercício de qualquer garantia constitucional enquanto durar a pandemia só pode ser interpretado supondo-se que o agente se comprometerá ao cumprimento das medidas preventivas, e não o contrário. Aliás, se a carreata for proibida por estas razões, deveria se proibir também a livre circulação de veículos que ocorre naturalmente nas grandes cidades, pois o comportamento de carros e motocicletas é o mesmo em ambos os casos.

              Ademais, aplicados os argumentos lavrados na decisão, diante da pandemia poderemos criar um estado policialesco paralelo, onde as limitações de liberdades constitucionais ficarão ao alvedrio do pânico e da inobservância do que diz a Constituição e a jurisprudência de nosso tribunal maior.

              Por fim, não havendo motivação legal para o impedimento da carreata, o Estado, de forma indireta, acaba por tolher a manifestação do pensamento que, por meio dela, seria expresso. Mais grave ainda, visto que, claramente, os integrantes possíveis da manifestação estavam a criticar justamente o posicionamento aparentemente abusivo dos poderes públicos, como o desta própria liminar e das autoridades que estavam tendentes a inclinar-se ao isolamento total, e não vertical, com comprometimento das atividades comerciais.

              A decisão do juízo merece reparo. A partir dela toda restrição maior, em nome da pandemia, poderá ser efetivada, ainda que não decretado estado de sítio ou de defesa. A legalidade merece obediência mesmo em períodos de grave instabilidade.



[1] A decisão pode ser consultada no processo nº 0811462-64.2020.8.10.0001, disponível ao público pelo sistema PJE.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 34 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 179, livro digital.

[3] ADI 1969/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 28.6.2007. (ADI-1969).

[4] MENDES, Gilmar Ferreira; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 256, livro digital.

[5] Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

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