É crime a recusa do médico em realizar exame de corpo de delito determinado por delegado?



É crime a recusa do médico em realizar exame de corpo de delito determinado por delegado?

1 –Dever legal que inexiste por quem não está apto a cumprir a obrigação.

Trata-se, aqui, de obtemperar sobre a seguinte hipótese: comete crime de desobediência o médico não pertencente ao quadro oficial de peritos do Estado, os quais inexistem na comarca, que se recusa a realizar o exame de corpo de delito a partir da nomeação ad-hoc pela autoridade policial?

Antes, porém, de adentrarmos aos meandros das justificativas, já se pode responder à indagação: de regra, cometeria crime se recusasse, mas esta obrigação legal admite exceções, as quais serão agora trabalhadas.

O crime de desobediência é assim descrito no Código Penal: “Art. 330 – Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.

Necessário esclarecer que esta espécie de nomeação para o ato da perícia está prevista no §1º do art. 159 do CP, que diz: “Na falta de perito oficial, o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame”.

Segundo prodigiosa doutrina, no crime de desobediência “se o agente não é responsável pela efetivação do ato que, acaso não cumprido, poderá ensejar o crime de desobediência, sua omissão ou não atendimento é absolutamente atípico, pois não tem o dever legal de executá-lo. O crime de desobediência somente se configura se a ordem legal for endereçada diretamente a quem tem o dever legal de cumpri-la[1]. (grifou-se)

Tomando como norte o que ensina a doutrina e a previsão legal, vê-se que não tendo o médico a especialização em medicina legal ou não sendo perito oficial, a obrigatoriedade legal decorreria do dispositivo citado. Porém, ao ser nomeado pela autoridade policial – e isso é óbvio – o perito deve reunir as condições técnicas e circunstanciais para tal, algo que o delegado somente presume quando, a seu critério, escolhe aleatoriamente um profissional para que realize o exame.

Se esta presunção não se confirmar porque o profissional admitiu não possuir conhecimento técnico, este deve expor as razões de sua recusa, as quais, em seguida, serão analisadas pelo Delegado, a fim de concluir se houve crime de desobediência ou não.

Portanto, pode ocorrer do médico nomeado não possuir competência técnica para realizar o exame. Em outras palavras, não se sentirá seguro para, realizando um exame de corpo de delito, contribuir com a persecução penal, haja vista a ausência de conhecimento na área.

Não se trata de mera desculpa, pois a técnica médica própria do ato é conditio sine qua non para sua realização.

Deste modo, jamais pode o médico, nestas circunstâncias, ser autuado por crime de desobediência, eis que lhe falta a técnica para o referido exame. Isto equivale a processar alguém por não fazer o que não poderia fazer! Contraditio in terminis!

De outra banda, o Código de Ética Médica[2]  dispõe no capítulo II, inc. IX, que é direito do médico: “Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”. Ora, é contrário ao ditame da consciência do médico proceder a ato para o qual não se sinta e não seja, de fato, preparado.

O tema é tão pacífico no seio profissional da medicina que já foram realizadas inúmeras consultas aos conselhos regionais de todo país, tendo sido as respostas no sentido indicado aqui, ou seja, da possibilidade de justa recusa pela declaração de incompetência para o exame. A exemplo, o Conselho Regional de Medicina da Paraíba, no processo-consulta 08/05[3]:

Exame de conjunção carnal

Processo-consulta no 8/05 CRM-PB

Assunto: nomeação de médico plantonista de maternidade

pública como perito para realizar exame de conjunção carnal. Pode

o médico se recusar?

Ementa: onde não há peritos oficiais, deve o médico nomeado para esse

encargo  por  autoridade  judicial  ou  policial  realizar  a  perícia,  podendo 

escusar-se de tal encargo apenas quando apresentar motivo justo.

No parecer 1.657/05, proveniente do CRM do Paraná, houve consulta específica sobre a recusa dos médicos para realização de perícias de lesões corporais. A resposta foi no sentido da possível recusa, desde que justificada:

Parecer no 1.657/05 CRM-PR

Assunto:  solicitação  de  perícias  de  lesões  corporais.  Recusa  por 

parte dos médicos na realização dos mesmos.

Ementa:  cabe  aos  médicos  lotados  nos  IMLs    a  realização  da  prova pericial  de  natureza  penal.  Não  existindo  IML  na  localidade,  cabe  à   autoridade  encaminhar  a  vítima  ao  IML  mais  próximo.  Caso  exista  por  parte  da  autoridade  a  nomeação  de  médico  do  município  para  atuar  como  perito,  cabe  a  este  aceitar  ou  não  o  encargo,  justificando  os  motivos  da  recusa.  Na  hipótese  de  o  médico  aceitar  o  encargo  de  perito, deve definir a forma da condução da perícia, o dia e a hora do exame, avaliar as situações de necessidade imediata do exame pericial, a necessidade de exames complementares e pessoal auxiliar necessário e outras  providências  que  o  caso  exigir.  Caso  o  médico  não  aceite  o  encargo, deve alegar as razões, sendo aceitáveis os mesmos casos em que a testemunha pode excusar-se de depor, além dos motivos de força maior, matéria sobre a qual não se encontre habilitado, possibilidade de dano a si próprio, tenha interesse pessoal no caso, esteja ocupado com outras perícias, conforme consta no Parecer no 1.214/2000 – CRM (PR) (grifou-se)

Embora estas consultas tenham sido feitas aos conselhos regionais, estão todas disponíveis no sítio do Conselho Federal de Medicina (conforme indicado na nota de rodapé), justamente para que sirvam de orientação às situações semelhantes que ocorram.

Infere-se, portanto, que sequer há justa causa para a persecução penal dada a escusa justificada, o que torna o fato atípico para os contornos do art. 330 do Código Penal.

2 – Da ausência de culpabilidade em razão da inexigibilidade de conduta diversa.

Para que se configure o crime, necessário que a conduta seja típica, antijurídica e culpável. Aqui, no entanto, resta prejudicado o elemento culpabilidade, que entre seus requisitos tem a exigibilidade de conduta diversa.

Conforme juristas de escol, a inexigibilidade de conduta diversa (Unzumutbarkeit) afastaria, portanto, a culpabilidade, pois “trata-se de um conceito que vem sendo desenvolvido a partir do descobrimento de certas circunstâncias anormais, que não se enquadram na inimputabilidade e nem no erro, e que ainda assim não obrigam o sujeito à realização de uma conduta lícita alternativa”[4].

Assim, na medida em que os conselhos regionais e o conselho federal de medicina têm instruído há anos os profissionais que atuam no país quanto a possibilidade de recusa da realização do exame de corpo de delito ad-hoc, ao afirmarem não terem aptidão técnica, não se pode exigir do paciente agir de outra forma, pois está socialmente orientado a agir de uma determinada maneira.

O ordenamento jurídico como um todo, e aí se entende a amálgama de leis e demais normais vigentes no país, não pode ser contraditório, e o médico nestas circunstâncias jamais imaginará sê-lo pois, se há uma orientação cogente aos profissionais da medicina para não se submeterem à obrigação legal quando alegam ausência de conhecimento técnico específico, está-se diante de uma justificativa plausível e orientada, não se podendo inferir que teria uma alternativa naquele momento, ou seja, que poderia agir de outra forma.


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – v. 05. 4 ed. São Paulo: Saraiva, p.204.

[2] Encontrado em : https://transparencia.crmma.org.br/index.php/legislacao/cem-atual#cap3, acesso em 21 setemb 2021.

[3] Encontrado em https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/periciamedica.pdf, acesso em 18 agosto 2021.

[4] FERRÉ OLIVÉ, Juan Carlos; NÚÑEZ PAZ, Miguel Ángel; OLIVEIRA, Willian Terra de, e COUTO DE BRITO, Alexis. Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. Editora: Revista dos Tribunais. 2011, p. 495.

Por: Jimmy Deyglisson é presidente da ABRACRIM/MA, especialista em ciências penais e advogado criminalista.


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