Doutor, sou gay, mas prefiro uma pena de cem anos!



Doutor, sou gay, mas prefiro uma pena de cem anos!

Não são poucos os episódios que marcam a vida do tribuno do júri. Não bastasse ser o caso criminal aquele que mais desperta atenção, revolta, temor e paixão, o tribunal popular encerra em si mesmo a possibilidade de controvérsias que poderiam subsidiar grandes manuais da psicologia e filosofia.

              Sempre gostei de ouvir, dos mais experientes que eu, as historietas que marcaram suas vidas profissionais. Acredito piamente que não há forma mais potente de absorver uma lição que aquela na qual se veicula a ideia através de um fato humano, real ou fictício. Desta forma os hebreus fizeram, ao contar a seus descendentes os milagres do deserto quando não havia escrita; os gregos foram igualmente por este mesmo rumo, ao narrarem e escreverem seus mitos; e o mesmo fez Jesus, considerado maior que escribas e fariseus, ao ensinar por meio de parábolas.

              Dito isto, certa feita, em um congresso nacional da advocacia criminal, estive com meu amigo e colega de profissão, Dr. Erivelton Lago, advogado criminalista de escol, cuja atuação na capital do Maranhão e adjacências marcou a vida de muitos, sejam seus próprios clientes, quem participou ativamente dos julgamentos, ou quem o assistiu, e este me relatou uma cena jamais esquecida.

              Contou-me ele que na cidade interiorana de Bacabal-MA, foi escolhido para substituir outro advogado na sessão plenária do tribunal do júri e se deparou com uma questão extremamente complexa e da qual dependeria a tese que escolhera para os debates orais.

              Tratava-se de acusação de homicídio qualificado onde o acusado, sujeito conhecido na cidade, com fama de “macho” que cultuava bastante seu próprio corpo, assíduo nas academias, foi denunciado por homicídio contra outro homem.

              Até aí, nada de muito incomum. Acontece que corria o boato na cidade que o acusado era homossexual, embora não praticasse atos públicos com esta conotação. Disso sabiam tanto os atores judiciais (o advogado, o juiz e o promotor), como os jurados, porém este detalhe não foi dito na denúncia ou mesmo tocado na instrução probatória anterior. Acredita-se que assim ocorreu em razão da orientação sexual nada ter de ver com o dolo de matar ou com a forma em que supostamente teria ocorrido. Mas júri, júri meus amigos, júri também é motivação, e o a homossexualidade do acusado estaria intimamente ligada às razões pelas quais o acusado teria agido como agiu, segundo concluiu o tribuno!

              Tendo em conta estas circunstâncias, foi dada a oportunidade ao acusado de entrevistar-se com seu advogado antes do interrogatório, como prevê a lei. Em sala separada, longe dos olhares e ouvidos da plateia, Dr. Erivelton Lago foi direto:

– Durante o interrogatório, você vai ter que admitir que era gay e que tinha um relacionamento com a vítima. A tese que vou sustentar necessita deste detalhe.

– Doutor, eu prefiro pegar uma pena de cem anos a ter que admitir que eu sou gay e que tinha um relacionamento com aquele rapaz – respondeu de pronto o acusado.

Diante desta resposta tão firme e que, a priori, destruiria por completo a estratégia proposta pelo experiente advogado, este redarguiu:

– Então “tá”, você nega, mas eu admito. Eu admito por você.

Apesar da inicial resistência do acusado, deu-se desta forma. O réu negou e o advogado admitiu. Deu certo. O acusado foi absolvido. Uma retumbante vitória. Aquele que não queria admitir sua homossexualidade era só alegria por ter suas razões acolhidas pelo júri. Não me perguntem que milagre aconteceu, pois os encantos na atuação do criminalista não se explicam como uma operação aritmética. Acredito que há ali uma espécie de misterium tremendum, para utilizarmos de empréstimo a expressão de Santo Agostinho.

O caso nos imprime a obrigação de resgatar algumas nuances próprias do homem em si e em sociedade. Jamais me passou pela cabeça algum dia um advogado adotar estratégia na qual sua versão, mesmo com relação a um ponto específico, no momento da sustentação era diferente daquela dita por seu cliente no interrogatório. Numa ligeira análise, seria loucura, suicídio.

Mas a história narrada e que de fato ocorreu, nos ensina a não subestimarmos jamais os detalhes próprios de um julgamento. Cada júri é um processo próprio, que não se iguala a nenhum outro ocorrido e que não terá outro igualmente semelhante.

O conselho de sentença é composto por pessoas do povo, que assistem televisão, ouvem rádio, têm redes sociais e normalmente estão a par do caso antes mesmo de serem escolhidas. Em cidades do interior, então, mais ainda, pois não é incomum que parte dos jurados sejam conhecidos ou mesmo amigos ou inimigos daquele que senta no banco dos réus.

Jurados normalmente são pessoas mais conservadoras e que nutrem os valores da sociedade de matriz judaico-cristã. Esta realidade deve ser considerada pelo tribuno, não para atacá-la, mas para dela extrair o conselho interior de como agir. Por exemplo, esta mesma sociedade, justamente por ser de matriz judaico-cristã, possui uma inclinação maior ao perdão, algo que não se vê na rígida cultura oriental, por exemplo.

A história me ensinou também que não há regra fixa para estratégias no júri. Claro que existe aquela que te dará a vitória, mas não há um organograma didático sobre como proceder. O tirocínio do advogado, como ser humano que participa da sociedade e com ela interage, é elementar para que, naquele momento de tensão, logo após as testemunhas serem ouvidas, deixe claro qual caminho seguir pelo acusado no interrogatório e qual o que, provavelmente, ele seguirá durante os debates orais.

Por fim, ao responder que preferiria uma pena de cem anos a admitir que era homossexual, o acusado expôs um dilema interno, no qual escolhia a vergonha da prisão ao invés da vergonha de se dizer gay, segundo seu critério.

Caberia ao advogado julgá-lo por isso naquele momento, censurado-o, obrigando-o a admitir algo que não queria e que, certamente, se admitisse, o faria de maneira acabrunhada, sem passar a sensação de certeza? Não. Ao causídico não é permitido constituir-se pedra no meio do caminho, mas ponte, parta de onde partir. Se é difícil em alguns casos? Claro que é, e por isso mesmo a profissão do advogado criminal é a mais nobre dentre tantas (que me perdoem os civilistas).

Talvez a psicologia daria uma solução diferente para aquele dilema e a filosofia tentaria também descortiná-lo, afinal, os incômodos existenciais são potencializados pela axiologia moral que entranhamos. Mas somente ao tribuno do júri foi dada a missão de não somente compreender o dilema, como também abraçar o acusado e encaminhá-lo, na medida do possível, ao portão de saída do fórum, livre tanto do julgamento de homicídio como daquele de um dia ter visto a si mesmo como homossexual.

Por: Jimmy Deyglisson é advogado criminalista, especialista em ciências penais e vice-presidente da ABRACRIM/MA.


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