Do testemunho de ouvir dizer (hearsay rule) – imediatidade e outras considerações



Do testemunho de ouvir dizer (hearsay rule) – imediatidade e outras considerações

Tem-se a não saudável prática de tornar comum, sem qualquer valoração cautelosa, a testemunha de “ouvida alheia” ou de “ouvi dizer” (hearsay rule) dentro do processo penal brasileiro.

De regra, entretanto, a testemunha deveria falar apenas do que viu ou ouviu relativamente e diretamente ao fato investigado e não se ouviu dizer, sem delimitar de quem colhera as informações, transformando assim, por exemplo, todos os telespectadores de rádio, televisão e internet, de um fato de grande repercussão, em potenciais testemunhas do caso, já que todas elas “ouviram dizer”.

É com extrema acuidade que se deve admitir tais tipos de prova, pois uma das características da prova testemunhal é a imediatidade. Em razão desta característica, na esteira do escólio de BADARÓ e GOMES FILHO[1]:

“A testemunha deve manifestar percepções sensoriais recebidas imediatamente por ela em relação a um fato passado, que no presente deve ser provado. Em outras palavras, é necessário que a testemunha reproduza uma percepção originária e direta do fato a ser provado, isto é, por ela imediatamente recebido”.

Daí que, “no testemunho indireto há uma cognição reflexa, que não oferece elementos seguros de informação, até mesmo porque a testemunha direta não terá qualquer responsabilidade pelo que a testemunha indireta tenha dito”[2].

Por tudo isso, concluem, a testemunha de ouvi dizer ´euma prova de “segunda mão”, devendo ser considerada “como elementos de informação indigno, sem o caráter de testemunho[3].

A jurisprudência pátria, na seara cível e trabalhista, já não aceita testemunha desse quilate, por evidente. Ora, se nestas áreas, onde não se discute direitos indisponíveis, não é aceitável esta produção de prova como legítima e suficiente para fundamentar uma decisão judicial, quiçá na seara penal, onde se digladiam a respeito da liberdade, direito indisponível que é. Veja-se:

CIVIL. Apelação cível. Ação de indenização por danos morais e materiais. Contrato de compra e venda de veículo meramente verbal. Pagamento. Prova. Exclusivamente testemunhal. Óbice. Art. 227 do CC. Testemunha de ouvi dizer. Invalidade. Manutenção da sentença. Desprovimento. Mesmo quando se aplica a regra do art. 227 do Código Civil, tratando a matéria de prova de pagamento, o depoimento testemunhal deve ser firme, claro, robusto, induvidoso e presencial, jamais se admitindo testemunha de ouvi dizer. Não constitui prova o depoimento testemunhal, quando a testemunha apresenta declarações de terceiros, deixando de configurar, assim, testemunha ocular do fato. (TJ-PB; APL 0001426-21.2010.815.2001; Segunda Câmara Especializada Cível; Rel. Des. Abraham Lincoln da Cunha Ramos; DJPB 03/07/2015; Pág. 19) CC, art. 227 (grifou-se)

TESTEMUNHA. OUVI DIZER. Necessidade de conhecimento pessoal dos fatos. Da testemunha exigi-se que tenha conhecimento pessoal e direto dos fatos sobre os quais depõe. Se a produção de prova visa justamente conferir certeza a circunstâncias fáticas marcadas pela controvérsia, trazendo subsídios concretos à formação do convencimento do julgador, evidentemente não se presta para tanto a declaração embasada em ‘ouvi dizer’. Este tipo de situação é mero repasse de informação, perdendo-se, evidentemente, nesse processo, a credibilidade e a convicção necessárias à caracterização de um depoimento como meio de prova. Sentença mantida. (TRT 09ª R.; RO 1228-63.2010.5.09.0008; Sexta Turma; Relª Desª Sueli Gil El-Rafihi; DEJTPR 07/05/2013) (grifou-se)

A testemunha de “ouvi dizer”, portanto, pode ser admitida para que, a partir dela, se descubra uma fonte de prova originária, uma testemunha presencial, por exemplo, mas jamais deve ser considerada como prova válida para o juiz formar seu convencimento, em que pese não ser este o costume que se engendrou na prática forense.

De outro lado, mesmo que se tenha por fundamental as informações prestadas pela vítima, esta continua ainda sendo parte interessada no processo, ou seja, suas declarações devem ser sopesadas como tal, já que não possui a mesma credibilidade que terceiro desinteressado. Aliás, repita-se o óbvio, a suposta vítima é quem mais tem interesse pessoal no conflito travado nos autos. Não se sabe seu passado e sobre ele não se debruça, não se dimensiona sua inclinação declarada à condenação, de maneira que pode esconder inúmeras e inconfessáveis intenções.

É indubitável que a palavra da vítima deva estar em consonância com outros elementos, o que não se depreende dos testemunhos de “ouvi dizer” colhidos em juízo.

Deste modo, é preciso repisar sempre que a credibilidade das testemunhas que “só ouviram dizer” não é a mesma que aquelas que presenciam os fatos. Somente em circunstâncias EXCEPCIONAIS esse tipo de testemunho pode proporcionar confiabilidade suficiente para o julgador.

Isto porque é recorrente promotores de justiça ou juízes, ao indagarem a testemunha se viu os fatos, esta responder que não, ao que é perguntada em seguida: “Mas você não ouviu nenhum comentário? Não ouviu dizer nada?”.

FRAGOSO[4], citando MANZINI, manifesta pensamento crítico quanto à admissão desse tipo de prova:

“as atestações indiretas, os conhecimentos reflexos, as deposições por ter ouvido dizer, não têm caráter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informação, através dos quais se pode eventualmente chegar ao verdadeiro testemunho”.

Nossos tribunais também tomam cautela ao valorar tais testemunhos.

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ART. 217 – A, DO CP. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE AUTORIA. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 312, DO CPP. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Verificando-se que as únicas notícias dos autos acerca da prática de relação sexual do paciente com menor de 14 anos é proveniente de testemunho indireto, prestado extrajudicialmente, não resta preenchida a exigência de indícios suficientes de autoria, do art. 312, do CPP. 2. In casu, o único indício de tal conduta delitiva é proveniente da declaração de uma adolescente, segundo a qual sua amiga, com 12 anos, havia mencionado com ela sobre ter se envolvido com o paciente. Não soube dizer a declarante, porém, qual o tipo de relacionamento. 3. O testemunho indireto, conhecido como “ouvi dizer”, embora seja aceito, em atenção ao livre convencimento motivado do juiz, deve ser observado com cautela, notadamente no caso sob análise em que foi prestado extrajudicialmente. 4. Ordem de habeas corpus concedida. (TJ-AM; HC 4002835-51.2013.8.04.0000; Primeira Câmara Criminal; Relª Desª Carla Maria Santos dos Reis; DJAM 04/10/2013; Pág. 17) CP, art. 217 CPP, art. 312 (grifou-se)

TESTEMUNHA. OUVI DIZER. Necessidade de conhecimento pessoal dos fatos. Da testemunha exigi-se que tenha conhecimento pessoal e direto dos fatos sobre os quais depõe. Se a produção de prova visa justamente conferir certeza a circunstâncias fáticas marcadas pela controvérsia, trazendo subsídios concretos à formação do convencimento do julgador, evidentemente não se presta para tanto a declaração embasada em ‘ouvi dizer’. Este tipo de situação é mero repasse de informação, perdendo-se, evidentemente, nesse processo, a credibilidade e a convicção necessárias à caracterização de um depoimento como meio de prova. Sentença mantida. (TRT 09ª R.; RO 1228-63.2010.5.09.0008; Sexta Turma; Relª Desª Sueli Gil El-Rafihi; DEJTPR 07/05/2013) (grifou-se)

Por fim, no informativo 603 do STJ (clique aqui), vê-se que o Superior Tribunal de Justiça já iniciou a colocação de balizas sobre o tema. No REsp 1.373.356-BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/4/2017, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o testemunho por ouvir dizer (hearsay rule), produzido somente na fase inquisitorial, não serve como fundamento exclusivo da decisão de pronúncia, que submete o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri.


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique R. I.; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Prova e sucedâneos de prova no processo penal brasileiro. In: NUCCI, Guilherme de Souza; ASSIS MOURA, Maria Theresa Rocha de. Doutrinas Essenciais de Processo Penal – v. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 265.

[2] Idem, ibidem.

[3] Idem, ibidem.

[4]FRAGOSO, Heleno Cláudio, encontrado em http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/heleno_artigos/arquivo5.pdf, acesso em 22 jan 2020.

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