Breves considerações sobre o princípio da insignificância



Breves considerações sobre o princípio da insignificância

A intervenção mínima é parâmetro de utilização do direito penal no moderno Estado Democrático de Direito. A história dos homens provou ser contraproducente elevar o direito penal como panaceia de todos os conflitos sociais, sob pena de violar-se as noções de proporcionalidade entre a conduta praticada e a resposta penal entregue.

              E é justamente nesta desproporção entre ação e resultado que reside a compreensão do princípio da insignificância. Segundo NUCCI, “representa a desnecessidade de se aplicar sanção penal a uma infração considerada insignificante em relação à proporcionalidade da lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal[1], como, por exemplo, furtar uma laranja de um supermercado.

              BITENCOURT assinala que o princípio da insignificância foi cunhado por CLAUS ROXIN, na segunda metade do século XX, erigindo-se a partir do brocardo minima non curat praetor, que significa “o pretor não cuida de coisas pequenas[2].

              Em termos práticos, primeiramente, há de se considerar que a insignificância afasta a tipicidade, entendida aqui nos seus aspectos formal e material. O conceito analítico de delito, como é cediço, repousa no encontro de três elementos: a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade, nesta ordem de interpretação. Há tipicidade formal quando a conduta do agente se adequa ao modelo legal da norma penal incriminadora, ao passo que a tipicidade material só existirá quando a conduta lesar ou ameaçar lesar, de maneira efetiva, o bem jurídico tutelado.

              Portanto, falta à ação insignificante este último atributo, na medida em que, embora se amolde ao tipo, não consegue lesar de maneira contundente o bem jurídico a ponto de se revelar razoável uma intervenção penal. Importante considerar, destarte, que “a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela extensão da lesão produzida[3].

              Essa valoração do fato em relação a sua possível característica bagatelar deve ser feita com bastante cautela e sempre levando em consideração a ordem jurídica como um todo. O Supremo Tribunal Federal procurou ditar os requisitos de sua aplicação e, segundo a pena de Celso de Mello (HC 98152), só poderia ser reconhecido quando presentes a 1) mínima ofensividade da conduta do agente; 2) nenhuma periculosidade social da ação; 3) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e 4) inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Por exemplo, é entendimento do Supremo Tribunal Federal que não se aplica o princípio da insignificância quando, mesmo sendo a lesão sendo ínfima, há reiteração delitiva do agente:

 

PROCESSUAL PENAL. Agravo regimental em habeas corpus. Furto. Princípio da insignificância. Reiteração delitiva. Impossibilidade. 1. Inexistindo pronunciamento colegiado do Superior Tribunal de justiça, não compete ao Supremo Tribunal Federal (stf) examinar a questão de direito discutida na impetração. 2. Em se tratando de crime de furto, a aplicação do princípio da insignificância deve ser casuística, incumbindo ao juízo de origem avaliar, no caso concreto, a melhor forma de assegurar a aplicação do princípio constitucional da individualização da pena, examinando a possibilidade da incidência do privilégio previsto no art. 155, § 2º, do Código Penal, ou do reconhecimento da atipicidade da conduta, com fundamento no princípio da bagatela (hcs 123.734, 123.533 e 123.108, Rel. Min. Luís roberto barroso). 3. O entendimento do STF é firme no sentido de que o princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (i) mínima ofensividade da conduta do agente, (ii) nenhuma periculosidade social da ação; (iii) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento; (iv) inexpressividade da lesão jurídica provocada, ressaltando, ainda, que a contumácia na prática delitiva impede a aplicação do princípio. 4. Hipótese de paciente contumaz na prática delitiva, tendo em vista que “possui contra si uma condenação por crime de roubo e outras duas por porte de arma. Registra, ainda, outras passagens por crime de ameaça, lesões corporais e porte de droga. Junto a isso, responde a processo por crime de tráfico de entorpecentes”, o que impossibilita o reconhecimento do princípio da insignificância. 5. Agravo regimental não provido. (Supremo Tribunal Federal STF; HC-AgR 119.844; Primeira Turma; Rel. Min. Roberto Barroso; DJE 06/08/2018) CP, art. 155

 

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já editou a súmula 599, que diz que “o princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a Administração Pública”. O fundamento é que nestes casos não está em jogo apenas a lesão ao bem jurídico, mas a moralidade administrativa, que restaria sempre agredida quando o agente cometesse uma conduta criminosa, fosse ela materialmente típica ou não. Em outros termos, a moralidade administrativa é insuscetível de valoração econômica. Veja-se o entendimento do STJ:

 

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. POLICIAL MILITAR. PECULATO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE EM CRIMES CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PLEITO DE ABSOLVIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7 DO STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Na hipótese, o Tribunal de origem manteve a condenação do agravante, ressaltando que “[n]ão se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, uma vez que a norma visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica“. 2. Para desconstituir o entendimento firmado pelas instâncias ordinárias, seria necessário proceder ao revolvimento do conjunto fático-probatório, o que é vedado pela Súmula nº 7 do STJ. 3. Agravo regimental não provido. (Superior Tribunal de Justiça STJ; AgRg-REsp 1.560.328; Proc. 2015/0251564-7; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Ribeiro Dantas; Julg. 07/06/2018; DJE 15/06/2018; Pág. 2130) (grifou-se)

 

              Ainda assim, porém, uma súmula de tribunal, sabe-se, não pode ser empecilho interpretativo eterno em alguns casos específicos que comportam características capazes de fazê-la ser superada. Dada a multiplicidade de fatos submetidos à apreciação do Judiciário e ao leque enorme de hipóteses consideradas, seria até mesmo anticientífico pretender que uma súmula pudesse gerir a totalidade dos fatos, em absoluto.

              Desta forma, andou bem o próprio STJ ao superar o indigitado verbete sumular em caso que reunia características que tornariam até mesmo desumana a sua aplicação, pois o réu era primário, já contava com 83 anos de idade à época dos fatos e o prejuízo representava 3% do salário mínimo vigente. Veja-se:

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DANO QUALIFICADO. INUTILIZAÇÃO DE UM CONE. IDOSO COM 83 ANOS NA ÉPOCA DOS FATOS. PRIMÁRIO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. MITIGAÇÃO EXCEPCIONAL DA SÚMULA N. 599/STJ. JUSTIFICADA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INCIDÊNCIA. RECURSO PROVIDO. 1. A subsidiariedade do direito penal não permite tornar o processo criminal instrumento de repressão moral, de condutas típicas que não produzam efetivo dano. A falta de interesse estatal pelo reflexo social da conduta, por irrelevante dado à esfera de direitos da vítima, torna inaceitável a intervenção estatal-criminal. 2. Sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 3. A despeito do teor do enunciado sumular n. 599, no sentido de que O princípio da insignificância é inaplicável aos crimes contra a administração pública, as peculiaridades do caso concreto – réu primário, com 83 anos na época dos fatos e avaria de um cone avaliado em menos de R$ 20,00, ou seja, menos de 3% do salário mínimo vigente à época dos fatos – justificam a mitigação da referida Súmula, haja vista que nenhum interesse social existe na onerosa intervenção estatal diante da inexpressiva lesão jurídica provocada. 3. Recurso em habeas corpus provido para determinar o trancamento da ação penal n. 2.14.0003057-8, em trâmite na 2ª Vara Criminal de Gravataí/RS. (Superior Tribunal de Justiça STJ; RHC 85.272; Proc. 2017/0131630-4; RS; Sexta Turma; Rel. Min. Nefi Cordeiro; Julg. 14/08/2018; DJE 23/08/2018; Pág. 2097) (grifou-se)

 

              Assim, o princípio da insignificância serve de vetor interpretativo de todos os casos penais em que a lesão ao bem jurídico se revele ínfima, tornando-se poderoso moderador da intervenção penal. Todavia, nem sempre poderá ser aplicado, sob pena de se agredir outros valores que a sociedade promove e busca proteger.



[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal – v. 1. São Paulo: Forense, 2017, p. 146, livro digital.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal – v. 1. 24 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 81, livro digital.

[3] BITENCOURT, idem, p. 84.

Por: Jimmy Deyglisson, advogado criminalista, especialista em ciências penais e vice-presidente da ABRACRIMA/MA.


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